Que os homens sempre tiveram e continuam a ter em muitos lugares e em diferentes circunstâncias poder sobre as mulheres, enquanto mulheres, é demasiado óbvio para ser negado. Que hoje esse poder começa a ser questionado em nome de um estatuto mais igualitário, é igualmente uma asserção factual. Que importa conhecer as raízes, a natureza e as razões da persistência desse poder é algo que será igualmente aceite, desde que se dediquem a este problema alguns momentos de reflexão.
John Stuart Mill em The Subjection of Women (1869) fez uma descrição muito lúcida e esclarecedora do modo como é exercido o poder dos homens sobre as mulheres e destacou algumas características que permitem compreender melhor as razões da persistência deste poder, através dos tempos, e da dificuldade em o erradicar.
Em primeiro lugar, o poder dos homens sobre as mulheres perpassa todas as classes sociais e é por todas ciosamente guardado. Do palácio à choupana, o marido, pai e chefe da família, exige e espera obediência e submissão da mulher. Há apenas ligeiras diferenças, enquanto nas classes possidentes, as esposas são encaradas como objectos de adorno que reconfirmam a posição social dos maridos, nas classes destituídas de propriedade, as mulheres têm uma utilidade imediatamente prática, servindo directamente os homens; mas, do ponto de vista psicológico e emocional, os machos das classes trabalhadoras continuam a ver a mulher como propriedade, e, não podendo aspirar a uma posição de estatus social, tendem a impor-se e a brutalizar as mulheres ainda mais do que os ricos.
Por outro lado, este poder exerce-se normalmente na intimidade do lar, longe do olhar de estranhos que não podem presenciar eventuais excessos ou abusos e, sobretudo, onde as mulheres, vivendo isoladas das outras mulheres e estando afectivamente ligadas ao opressor, não são capazes de articular e de objectivar as experiências comuns da sua submissão e de assim tomarem consciência real da situação em que se encontram; esta característica é garantia certa da persistência deste poder que, não sendo objectivado através das palavras e da comunicação discursiva, é encarado como normal e aceite passivamente. O modo como este poder é exercido é muito diferente do poder do senhor sobre os escravos, porque estes podem objectivar e tomar consciência da opressão a que são sujeitos e aproveitar o ódio que alimentam como combustível para se revoltarem quando a oportunidade se oferecer.
É ainda um poder que resulta de uma relação de desigualdade entre homens e mulheres que é apresentada como natural. Sempre que existe uma relação de domínio, este aparece como algo que para o dominador é natural e que o dominado, até certo ponto aceita, só se queixando quando o exercício desse poder é excessivo e comporta abuso nítido. O dominador procura criar condições para que o dominado aceite a relação sem recalcitrar e, no caso das mulheres, os homens esmeraram-se porque, dada a situação de proximidade física e afectiva que mantém com as mulheres, como diz Stuart Mill, eles não querem apenas escravas, querem escravas voluntárias, dóceis e submissas; não querem apenas os corpos e os serviços das mulheres, querem também os seus sentimentos. Desse modo, foi muito importante «educar» as mulheres para que acreditassem que têm um carácter muito diferente do dos homens, que não têm vontade própria nem capacidade de domínio e auto-controlo, que são naturalmente frágeis e dependentes e anseiam ser governadas. Foi ainda necessário que interiorizassem uma imagem delas próprias enquanto seres vocacionados para viverem para os outros, abnegadas, dotadas de espírito de sacrifício; numa palavra, foram ensinadas a viver para os homens e pelos homens, desistindo de uma vida própria, desistindo da sua autonomia e identidade individual. Este condicionamento foi tão forte que ainda hoje estes são traços de carácter que muitas mulheres gostam de reconhecer como seus e que acabam por constituir um entrave à sua afirmação e realizações pessoais.
Assim, dadas as circunstâncias em que o poder dos homens se exerce, conseguiu-se que as mulheres, ou pelo menos muitas delas, aceitassem voluntariamente o estatuto de inferioridade que a sociedade lhes reservava, sem reconhecerem a existência de qualquer coerção, pois julgam estar a exercer a sua liberdade de escolha; mas isto não impede, como lucidamente Stuart Mill acentuou, que não exista coerção, ela existe e é mesmo pior do que aquela que subjaz à escravatura, pois resulta de uma relação de profunda desigualdade que foi mascarada para parecer consensual e que se torna muito difícil de erradicar porque não é reconhecida enquanto tal.
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