terça-feira, 6 de outubro de 2009

(3) O que é que há de errado com a pornografia?

A pornografia, ao conferir uma dimensão erótica à desigualdade entre os sexos - e aqui estamos a falar em inferiorização e submissão de um em relação ao outro - torna essa desigualdade e inferioridade sexualmente apelativa e desejável: mulheres jovens e fisicamente atraentes mostram-se encantadas por poderem «servir» os homens e colocar-se sob o seu domínio, entregando-se a toda uma série de práticas sexuais que objectivamente devem dar prazer aos homens, mas que, também objectivamente, em si mesmas, pouco ou nenhum prazer lhes devem dar a elas próprias.

A regra de ouro da sexualidade - a reciprocidade, é completamente ignorada pela pornografia: as mulheres fazem sexo oral aos homens, mas os homens não fazem sexo oral às mulheres - pelo menos essa não é a norma; as mulheres masturbam os homens, mas os homens não masturbam as mulheres; mesmo a penetração vaginal é frequentemente preterida pelo sexo anal que, temos de convir, para além de outros inconvenientes, dá provavelmente mais gozo ao homem do que à mulher, pois nesta é acompanhado, senão de dor, pelo menos de algum desconforto. Pode dizer-se, sem sombra de dúvida, que na narrativa pornográfica não há o mais leve indício de que o homem esteja preocupado em dar prazer à mulher, bem pelo contrário parece presumir e quer fazer-nos crer que ela tem prazer quando ele sente prazer o que mostra bem a lógica egocêntrica e falocêntrica que preside a este concepção da sexualidade.

Neste contexto, parece bastante óbvio que os homens que consomem pornografia vão achar muito natural que as suas parceiras alinhem nestas práticas que são mostradas como naturais e prazerosas para as mulheres; se estas também consumirem pornografia, o que é expectável, por influência dos próprios companheiros, vão sentir que não há nada de errado em se submeterem aos desejos dos homens e poderão mesmo achar desejável essa situação que lhes é apresentada como correspondendo ao cúmulo do erotismo.

Num período de crise de paradigma, em que as mulheres começam a questionar a inferioridade que lhes querem impor aos mais diversos níveis, a pornografia dá uma ajuda moderna, é um instrumento de violência simbólica que vai conferir uma aparência de consentimento àquilo que, desmontados os mecanismos subjacentes, não é mais do que adesão extorquida. Aparentemente ninguém obriga as estrelas porno a fazerem os filmes que fazem, ninguém obriga as mulheres a consumirem os filmes que consomem; tudo ocorre na paz dos senhores. Mas, se bem repararmos, a pornografia, ao apresentar como sexualmente desejável uma diferença e uma desigualdade que apenas radica no poder físico e económico superior dos homens, e portanto na coerção, mascara a realidade - o que resulta de imposição passa a parecer decorrer de livre e espontânea aceitação. Concomitantemente, ao proclamar o consentimento da mulher à submissão, legitima essa submissão e suporta o regime de desigualdade entre mulheres e homens, dando uma aparência de consentimento àquilo que é coercivo.

Um outro aspecto a que interessa dar relevo é que a pornografia é consumida no domínio privado, ver filmes pornográficos é uma coisa que as pessoas fazem na intimidade, e com certo resguardo, mesmo quando, o que é agora raro, frequentam um cinema. A pornografia não se discute, não se objectiva e portanto também não se critica; desse modo pode impor às mulheres sem qualquer dificuldade uma concepção de sexualidade que é masculina e pode impedir que elas próprias articulem e exprimam os seus desejos e as suas fantasias, independentes das fantasias dos homens sobre elas, numa palavra pode impedir que «construam» a sua própria sexualidade. A situação ainda se agrava pois as mulheres, já de si pouco interventivas nas áreas do social, dados os condicionalismos da sua educação e existência, sentem normalmente vergonha de abordar directamente estas questões o que acaba por lhes ser profundamente prejudicial.

Em resumo, poderíamos dizer que, por um lado, a pornografia apresenta a submissão da mulher como livremente aceite e desejável; por outro, ao descrever a sexualidade em termos de desejos e fantasias masculinas, impede as mulheres, sujeitas a esse modelo, de articularem os seus desejos e fantasias e de exprimirem a sua sexualidade no que ela tenha de específico. Claro que tudo isto será irrelevante para quem considerar que a especificidade da sexualidade da mulher é agradar e submeter-se ao homem - que é o caso da pornografia e que infelizmente um grande número de homens, e até de mulheres, aceita como normal e desejável.
P.S. Não sei se é preciso, mas para evitar qualquer dúvida, devo esclarecer que a minha abordagem em relação à pornografia não é de modo nenhum moralista, no sentido da moralidade positiva; não a condeno por ser obscena ou por dissociar o sexo do amor, condeno-a num sentido ético porque penso que ela manipula as mulheres e trata-as muito mal. Penso que sexo e amor é bom, mas aceito que sexo sem amor também pode ser bom. Digo tudo isto em adenda, porque sei que muit@s costumam olhar aquel@s que criticam a pornografia como pessoas que não gostam de sexo ou têm preconceitos em relação ao sexo, para assim fazerem passar a sua mensagem, descredibilizando quem se lhe opõe.

13 comentários:

  1. É preciso desconhecer o objecto do qual se discursa para se afirmar taxativamente que "a regra de ouro da sexualidade - a reciprocidade, é completamente ignorada pela pornografia: as mulheres fazem sexo oral aos homens, mas os homens não fazem sexo oral às mulheres - pelo menos essa não é a norma". Isto é, simplesmente, falso.

    Em primeiro lugar, "as" regras de ouro da sexualidade são múltiplas e muito mais importante do que a "reciprocidade" há o desejo, as ferômonas, as fantasias, a Posse e, claro, a Submissão. A carne.

    Repare que esses papéis são flutuantes e tão depressa é o homem aquele que possui como aquele que é possuído, mesmo numa gande parte da pornô.

    Isso dito, passemos ao cerne da sua irresponsável afirmção que depois a leva por caminhos completamente desbalizados: é completamente falso dizer que a norma da pornografia priveligia felatio sobre cunilingus. É preciso não conhecer a pornografia actual para pensar uma coisa dessas. Quanto a isso, sugiro que analise mais de perto, com mais pormenor, queimando mais pestana, percebe?, o objecto sobre o qual bobageia tão prolificamente e, de modo geral, assumindo uma postura puritana, proibicionista, negativa.

    Cps

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  2. 'Em primeiro lugar, "as" regras de ouro da sexualidade são múltiplas e muito mais importante do que a "reciprocidade" há o desejo, as ferômonas, as fantasias, a Posse e, claro, a Submissão. A carne."

    _ Bem só mesmo um homem pra achar que o seu desejo é imperativo e a reciprocidade fica em ultimo lugar, em outro lugar dentro da relação sexual.

    Típico raciocínio de quem se vê a maior parte das vezes como o senhor e dominador e onde a objetificação de outro ser humano é regra para a satisfação de suas fantasia de posse e submissão (o sadismo inerente áqueles que só sabem reduzir á mulher a seus orificios e por isso emulam e consomem a pornografia, pois ela lhes dá o paradigma de que a mulher é sómente a carne, o local onde ele realiza seus desejos, fantasias).

    A única regra de outro que supera todas as outras é a reciprocidade e o respeito ao outro ser humano que ali está partilhando de sua intimidade e afetividade. Sem a reciprocidade, realmente o sexo se reduz somente à carne, ao desejo, ao impulso e fica só a relação solitária que o homem tem com seus próprios desejos e onde não quer ou não leva em conta os desejos da mulher, pois essa já está cumprindo o unico papel que a pornografia lhe reserva: ser depositária dos desejos de homem e por ultimo do seu esperma.


    Afinal, a reciprocidade que o homem quer da mulher é a permissão à sua masturbação solitária realizada nela.

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  3. No script pornô só há espaço para o pênis. Penis manipulado pelas mãos, pênis na boca, na vagina e no ânus e depois a ejaculação no rosto ou boca da mulher. só isso já bastaria para deixar claro o cerne da pornografia. Ao ejacular na boca ou rosto da mulher, o homem imitando a prática masturbatória (pois goza fora no sexo solitário), deixa bem claro que estava o tempo todo se masturbando na mulher. Nada de reciprocidade. Só penetração e nada mais. Outra questão é o sexo anal, tão privilegiado hoje em dia, e que a meu ver denota uma outra mensagem; o desprezo pelo sexo feminino é tanto, que os homens preferem a penetração anal pois a vagina que só a mulher tem, tem que ser tão desvalorizada quanto a mulher que a possui em si.

    “Pornografia = normatização do sexo, técnica de disciplina dos desejos do corpo.”
    pink cross presents.... dead porn stars memorial:
    http://www.youtube.com/watch?v=r0q_VGacfNk

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  4. Manifesto antipornografia
    http://www.esnips.com/doc/bc145741-d1ae-4d0b-b0ca-a3f7639ba9c2/Manifesto-Antipornografia

    Efeitos da pornografia
    http://www.esnips.com/doc/f79a1ab4-28b5-42fe-adc1-1cb26fe93560/efeitos-da-pornografia



    Pornografia torna o mundo mais violento
    A violência sexual dos homens não é trabalho de individualidades psicóticas mas produto da construção normal da sexualidade maculina em sociedades como estados unidos e australia hoje em dia - como uma prática que define seu status superior e subordina mulheres. Se nós queremos seriamente acabar com tal violência a gente não pode aceitar essa construção como o modelo do que "sexo" realmente é. - Sheila Jefreys
    http://www.esnips.com/doc/820e4da6-d87e-4c7b-b0a3-accd0cdc91a5/Pornografia-torna-o-mundo-mais-violento

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  5. Making womans place explicit_pornography violence and the internet

    "The consumption of pornography can be directly linked to violence against women."
    http://www.esnips.com/doc/4ce9e47a-cb98-42e0-8016-537ed22a8945/Making-womans-place-explicit_pornography-violence-and-the-internet

    pornography_-_DRAFT-7

    Pornography disempowers women. It is a billion-dollar industry that teaches people that violence against women is acceptable and encouraged. It teaches that sexual stimulation is about the power and control by men over women and children.
    http://www.esnips.com/doc/4b099017-1517-437a-922d-ddb12667d091/pornography_-_DRAFT-7


    Observacoes sobre a libido colonizada _ tentando pensar ao largo do patriarcado
    Nestas observações procuro refletir sobre algumas conseqüências da maneira como pensamos e vivemos nossos desejos. Procuro contrastar nossos desejos com a idéia de liberdade e com a maneira como pensamos a natureza. Isso me leva rapidamente a pensar na pornografia, na identidade masculina e em seguida no nosso regime de auto-estima.
    http://www.esnips.com/doc/390e2a27-f084-4ecd-a4b4-5f568caa935a/Observacoes-sobre-a-libido-colonizada-_-tentando-pensar-ao-largo-do-patriarcado

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  6. Porn and abuse
    And in today’s culture, even if both partners grow up without watching porn, the porn industry’s influence is growing: the images of women on lads’ mags covers in your local newsagent, the trend in ripping out all your pubic hair, thongs for tweenies, women performing stripper moves in music videos, the list goes on.
    http://www.esnips.com/doc/bbf07342-b74b-4486-8ef2-f66d37547fb7/Porn-and-abuse

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  7. “O intolerável é aquilo que ameaça o próprio exercício da tolerância, é algo que nega uma verdade sobre a qual não há nenhuma dúvida moral (que a escravidão é um mal absoluto, por exemplo), ou ainda é algo que compromete a integridade física das pessoas (o corpo inviolável como constituinte da pessoa humana é base de
    sua liberdade) ou da sua personalidade moral”.
    Danielle Ardaillon

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  8. o anónimo que botou o primeiro comentário8 de outubro de 2009 às 18:17

    Ouça, meu caro..er... palerma anónimo; quer que lhe cite sites onde se pode educar? Veja lá. Se quiser, até metem medo mas, pronto, o cinema pornô tem imensas cambiantes, não é? Peça que eu cito, esteja a vontade, não se coiba de conhecimento, ele não ocupa lugar.

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  9. Bem, em relação ao primeiro anónimo que comentou, a conclusão que posso tirar é que eu e ele não partimos das mesmas fontes, não sei que filmes tem andado a ver para considerar falsa a minha afirmação e se calhar o governo sueco, por exemplo, também ignora esses mimos pornográficos que ele refere, de outra maneira não estava a investir o dinheiro dos contribuintes na promoção, incentivo e subsídio à realização de filmes porno não sexistas. Ou será que o anónimo também considera as autoridades suecas mentirosas e irresponsáveis como me considerou a mim e aos comentadores/as anónim@s que deram a seguir a sua opinião? Bem, se a reciprocidade em sexo não é a regra de ouro então realmente o melhor é encerrar a discussão, pois até o misógino Kant nela apostou e qualquer pessoa de bom senso lhe reconhece sempre grande mérito para contornar a tendência manipuladora dos seres humanos.
    Quanto à acusação de puritanismo ela também é recorrente e sempre é lançada contra quem critica a pornografia sexista predominante. Note-se que neste blog já tive oportunidade de afirmar que não via problema em aceitar a pornografia não sexista, isto é uma narrativa sexual que não diminuísse ostensivamente as mulheres.
    O nosso comentador acusa-me ainda de não «queimar pestana», o que só mostra que está pouco atento aos meus textos, às fontes a que recorro e à argumentação de que me sirvo para defender os meus pontos de vista.
    Apenas mais um pequeno detalhe, este anónimo não hesita em apelidar de palerma quem não pensa como ele, o que parece indiciar uma maneira pouco elegante e muito incorrecta de se relacionar com as outras pessoas.

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  10. Quanto aos restantes comentários, de uma maneira geral concordo com o que dizem e para reforçar vou citar um pequeno apontamente da Nana que acho soberbo na medida em que define de forma exemplar a situação: «os homens é que são mesmo autistas e não conseguem perceber... ou não querem saber, que é o mais provavel... afinal eles"aprendem" a gozar com uma prostituta e por isso não aprendem a fazer sexo COM alguem e sim EM alguem, por mais crua que seja essa afirmação... é assim...»
    Só acho que a Nana devia ter previsto algumas boas excepções porque as há...

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  11. Gostaria ainda de congratular @s autor@s dos outros comentários, em que haverá provavelmente algumas mulheres, pela sua capacidade para verbalizarem estas questões, rompendo o silêncio que muitos homens e até muitas mulheres nos pretendem impor. Não podemos esquecer que o Verbo é poderoso e por isso é que ele tem sido cerceado às mulheres às quais ainda se continua a dizer, através de vários meios em que as mensagens são muito subtis, que não é muito apropriado para uma mulher tomar a iniciativa de falar. Por exemplo, nos contos de fadas que povoaram a nossa infância só as mulheres más falavam, vide as feiticeiras, as outras são sempre muito modestas e recatadas.
    Eu própria tive de ultrapassar certas limitações até ser capaz de me pronunciar abertamente sobre estas questões, claro que, como as minhas opiniões não coincidiam com as dele, o primeiro comentador tratou logo de me desqualificar dizendo que eu não sabia do que estava a falar. Típico de quem percebeu o poder do discurso e como este pode ameaçar certas supremacias.
    Um outro pormenor é a dificuldade que ainda temos de sair do anonimato para exprimirmos as nossas opiniões sobre sexo com receio de sermos penalizadas e estigmatizadas socialmente.

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  12. Adília,eu só acho que vc tinha que ser um pouco mais egura quando escrever seus textos e responder os falocratas que volta e meia aparecem por aqui.Ser mais afirmativa e evitar esta repetição de "concordo" ou "não concordo"e sempre achar que há exceções para "salvar a lavoura".O machismo não é uma questão de opinião,é um fato,um ataque sério aos nossos direitos humanos e deve ser tratado como tal.E também cuidado com estes "bom moços",que chegam pousando de humanistas e solidários mas nada lêem ou pouco lêem sobre a causa feminina para poderem argumentar ao nosso favor.
    bja s e parabéns pelo blog ^_^

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  13. Cara Amiga
    Em relação ao seu comentário, tenho a observar que a radicalidade da crítica à supremacia masculina ignora ou parece ignorar que praticamente todas as mulheres têm laços afectivos muito fortes com os homens, daí que apresentá-los como um inimigo a abater só fornece munição ao anti-feminismo. Por isso, em termos de sucesso e de pragmatismo, parece-me que é preferível defender as mulheres a atacar os homens, o que de modo nenhum implica ignorar ou deixar de denunciar as situações de opressão.
    abraço. adília

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