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quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Filosofia e sexo

Através dos tempos, de uma maneira geral, os filósofos manifestaram desinteresse pela sexualidade humana. É certo que Platão, em alguns diálogos, se debruçou sobre o tema, mas os mitos e fábulas que nos legou, embora interessantes, não deixam de revelar uma abordagem pouco séria e superficial. Só muitos séculos depois, mais precisamente no século XIX, um outro pensador, por sinal um ícone da misoginia filosófica, revelou um interesse directo e tratou a sexualidade humana de modo sistemático em “A Metafísica do Amor Sexual”, publicado em 1844.
Para entendermos a depreciação do sexo pelos filósofos, visível nas suas omissões, temos de lembrar que o ideal de vida filosófico é o ideal de vida pela razão, entendida como uma faculdade pura, divorciada da própria afectividade. O desejo sexual é visto como uma paixão que perturba a capacidade racional, como um estorvo que impede ou pelo menos prejudica a ascese intelectual. Libertar-se das paixões do corpo e especialmente, pela sua premência e excesso, da paixão sexual é o desiderato dos filósofos.

A grande maioria dos filósofos nem sequer casou; as mulheres dos outros, dos que casaram, ou são completamente desconhecidas ou viraram anedotas, como é o caso da irritante e rabugenta Xantipa - o protótipo do que uma esposa não deveria ser - que o bom e paciente Sócrates “evitava”, preferindo-lhe a estimulante companhia do belo e inteligente Alcibíades. Na Idade Média, com uma filosofia serva da teologia, não surpreende que os Doutores da Igreja se limitassem a aceitar o sexo como um mal necessário, reduzido à dimensão heterossexual genital e legitimado apenas no casamento monogâmico. O racionalismo moderno libertou-se, pelo menos formalmente, da tradição religiosa, mas na questão sexual mostrou-se muito pouco moderno. Os grandes filósofos da época, Descartes, Espinosa, Leibniz, Hume, Kant, Schopenhauer, Nietzche, não casaram e alguns levaram vidas sexuais paupérrimas, como foram os casos mais flagrantes de Kant e Nietzsche.
A este aparente desinteresse dos filósofos pela sexualidade não deve ser alheia a persistente e dominante concepção dualista da natureza humana, que a grande maioria defendeu. De acordo com esta concepção, o ser humano é uma dualidade: corpo e alma, o corpo é material e perecível, a alma espiritual e eterna; depreciar o corpo e exaltar o espírito é apenas e tão-somente o corolário necessário desta maneira de entender a natureza humana; como a sexualidade tem uma nítida dimensão física, foi apenas fácil e natural esquecer completamente a sua outra dimensão e desvalorizá-la, considerando-a, no mínimo, um elemento perturbador para a vida do espírito.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Sexualidade e ética

A forte carga erótica e o glamour com que é representada a submissão sexual da mulher neste cartaz publicitário pode ajudar a compreender melhor o tema que hoje aqui trago. O belo e lúcido texto de Sandra Lee Bartky, a seguir apresentado, questiona-se sobre o conflito que as mulheres, e mais particularmente as feministas, podem vivenciar entre a sua vida sexual – comportamentos, desejos e fantasias - e os princípios éticos de autonomia, igualdade e liberdade pelos quais querem pautar as suas vidas; nele a autora aponta o caminho possível para a resolução deste conflito:

«Ser um ser sexuado e ao mesmo tempo um agente moral pode na verdade constituir um elemento perturbador; não admira que os filósofos tenham desejado que nos pudéssemos ver livres da sexualidade. Que fazer, por exemplo, quando a estrutura do desejo entra em conflito com os princípios da pessoa? Esta é uma questão difícil para quem quer que seja consciente, mas é particularmente pungente para as feministas.
Uma contribuição teórica fundamental da análise feminista da opressão das mulheres pode ser apreendida através do slogan «o pessoal é político». O que este significa é que a subordinação das mulheres pelos homens é pervasiva: que ela regula as relações dos sexos em todas as áreas da vida; que uma politica sexual de dominação está em evidência tanto nas esferas privadas da família, da vida social comum e da sexualidade como nas esferas públicas do governo e da economia. A crença de que as coisas que fazemos no seio da família ou na cama são ou naturais ou simples função de idiossincrasias pessoais de indivíduos privados é mantida como uma «cortina ideológica» que esconde a realidade da sistemática opressão das mulheres.
Para a feminista duas coisas decorrem da descoberta de que a sexualidade também pertence à esfera do político. A primeira é que o que quer que faça parte da sexualidade – não apenas o comportamento sexual, mas também o desejo e as fantasias sexuais – tem de ser compreendido com relação a um sistema mais amplo de subordinação. O segundo é que a sexualidade deformada da cultura patriarcal deve ser deslocada do domínio escondido da «vida privada» para a arena da luta, onde uma sexualidade de respeito mútuo «politicamente correcta» irá conflituar com uma sexualidade «incorrecta» de domínio e submissão.»
Sandra Lee Bartky: «Femininity and domination: Studies in the Phenomenology of Oppression», Routledge, 1990, p. 45

terça-feira, 25 de maio de 2010

Freud e sexualidade feminina

A prática da ablação do clitoris, hoje entendida, por gente civilizada, como uma prática selvagem e uma torpeza inominável que se comete contra as mulheres, encontra justificação em teorias freudianas conhecidas que tiveram tremendo impacto nas mentalidades nos fins do século XIX e no decurso do século XX.

Este caso particular chama mais uma vez a nossa atenção para o perigo de se aceitar acriticamente os dados e as teses dos investigadores, cientistas ou para-cientistas, porque, abrigando preconceitos milenares, muitas vezes, limitam-se a fornecer o racional para esses preconceitos. Não quero com isto dizer que o trabalho científico não seja meritório, tenho-o mesmo em alta conta, mas é preciso estar com atenção porque os cientistas e as cientistas são homens e mulheres como toda a gente, que abrigam preconceitos comuns na sua época, que têm um pensamento voluntarista (wishfull thinking) e que, obviamente, se enganam e iludem com mais frequência do que seria desejável. Vejamos pois algumas das teses da psicanálise freudiana:
O masoquismo, enquanto característica inerentemente feminina; a inveja do pénis; a mulher como um ser sexualmente castrado; o conceito de ferida narcísica são algumas expressões dessas teses e também dos preconceitos que incorporam. Os danos que provocaram, e continuam a provocar, na vida das mulheres são incalculáveis.
Aceitar que as mulheres são por natureza masoquistas e que o masoquismo feminino é fundamental para a preservação da espécie humana; que as mulheres têm inveja do pénis e que se sentem sexualmente castradas, implica defender teses que estão por provar, cabendo o ónus da prova a quem as defende. Construir uma teoria da sexualidade feminina com base nestas premissas é tudo menos sério, por mais respeitáveis que sejam os seus proponentes. Investigadores mais atentos deveriam ter constatado que afinal estavam a dar expressão «pretensamente» científica à visão comum que a sociedade da época tinha das mulheres e da sua sexualidade; mas, provavelmente, estes não estavam tão atentos assim e, numa época conturbada pelas novas e «estranhas» reivindicações das mulheres, esqueceram-se de psicanalisar os seus próprios receios, sentindo-se mais confortáveis no aconchego dos mitos com os quais conviviam de longa data. Esqueceram-se ainda que é possível encontrar explicações mais consistentes para o «aparente» masoquismo feminino e que a famosa inveja do pénis - se é que corresponde a alguma realidade, também tem outro tipo de explicação.

O texto de Sandra Lee Bartky a seguir apresentado descreve bem a concepção de sexualidade feminina defendida por Freud e discipul@s; esta, se levada às suas últimas consequências, justificaria que se procedesse, como se faz em outras culturas, à ablação do clitoris nas mulheres, como meio de facilitar o investimento numa sexualidade vaginal passivo-masoquista. Mas nós sabemos bem como esta prática, nessas outras culturas, responde a motivações de domínio sobre as mulheres bem menos confessáveis e completamente injustificáveis. Vejamos pois o texto:

«Freud e os primeiros psicanalistas nunca puseram em dúvida que a natureza feminina é inerentemente masoquista. Acreditavam que nas mulheres o masoquismo era em larga medida instintivo na sua origem, isto é, era consequência de uma certa canalização da libido do seu primitivo «cathexis» sádico-activo clitoridiano para um investimento vaginal passivo-masoquista.
O que é que isto significa? A jovem sofre uma ferida narcísica ao descobrir a «inferioridade» do seu próprio órgão, isto leva-a a ficar desapontada com o seu investimento clitoridiano «imaturo» e com a auto-estimulação activa do seu próprio corpo; começa então a antecipar a sua realização, primeiro a partir do pai e depois, muito mais tarde, a partir de alguém que o representa. Dado que o potencial da vagina para o prazer sexual é apenas estimulado através da penetração, a mulher psico-sexualmente madura, apta para a relação heterossexual e assim para a reprodução da espécie, deve esperar até ser escolhida e «tomada» pelo macho.
A repressão da sexualidade clitoridiana é necessária para que tal aconteça. A eminente freudiana Helene Deutsch acreditava que, dado que a menstruação, a desfloração e o parto – os principais eventos na vida sexual das mulheres – são dolorosos, o masoquismo feminino é funcionalmente necessário para a preservação da espécie. Maria Bonaparte acreditava que a ideia de relação sexual causava à jovem medo de ser atacada no interior do seu corpo; apenas a transformação da libido sádico-activa na masoquista-passiva podia permitir que uma mulher aceitasse a «continua laceração da relação sexual». Sandor Rado, um outro freudiano, dizia que a extrema dor mental sofrida pela jovem quando descobre a sua «castração» a excitava sexualmente; daí decorreria que ela só conseguiria atingir satisfação sexual através do sofrimento.» *

Sobre a inveja do pénis, que considero ser mais uma mistificação da cultura falocêntrica, volto a citar o texto de Lois Tyson, em Critical Theory Today:

«Muitas mulheres, feministas ou não, têm dificuldade em acreditar que as meninas, depois de descobrirem que os rapazes têm pénis, sofrem de «inveja do pénis», ou do desejo de ter um pénis, ou que os rapazes, depois de descobrirem que as meninas não têm pénis, sofrem de ansiedade de castração, ou do medo de perder o seu pénis. Contudo, a explicação destes dois fenómenos é clara, quando nos apercebemos do contexto cultural em que Freud os observou: a rígida definição de papéis da sociedade Vitoriana, que era usada para oprimir as mulheres de todas as idades e para elevar os homens a posições de dominância em todas as esferas da actividade humana.
Será de estranhar que uma menina queira (pelo menos a nível inconsciente) ser um rapazinho, quando percebe que os rapazinhos têm direitos e privilégios a que se supõe que ela nem sequer deve aspirar? Por outras palavras, quando você vê «inveja do pénis» leia «inveja do poder». É o poder e tudo o que parece acompanhá-lo – auto-estima, divertimento, liberdade, segurança em relação à violação física pelo sexo oposto – que as rapariguinhas invejam.
E o que o rapazinho sente - depois de perceber a sua superioridade social e o poder que esta comporta em relação às meninas – não será ansiedade pela possibilidade de o perder? A frase “É uma menina ou um mariquinhas”, tem o condão de ferir os rapazinhos (e também os rapazes grandes) porque os ameaça com essa perda de poder. A ansiedade da castração é assim melhor compreendida como o receio de ser removido para a posição de ausência de poder ocupada pelas mulheres.»

Em breves e curtas palavras podemos dizer que Freud e correligionári@s contribuíram para a manutenção dos valores da sociedade patriarcal, reforçando a sua misoginia, fornecendo-lhe o racional e colocando ao seu serviço uma retórica forte que fixava a atenção das pessoas, tão forte que ainda hoje, tantos anos volvidos ainda nos são familiares os conceitos e preconceitos que através dela exprimiram.
*Sandra Lee Bartky: Femininty and Domination: Studies in the Phenomenology of Oppression», Routledge, 1992, ps. 52-53


Sandra Lee Bartky: Femininty and Domination: Studies in the Phenomenology of Oppression, Routledge, 1990, p.s 52/3

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Sexualidade feminina e masoquismo

Suponho que muitas mulheres e particularmente muitas feministas, mais conscientes e habituadas a pensar criticamente, convivem mal com a sua sexualidade já que esta, enquanto «constructo social», não pode deixar de reflectir as estruturas opressivas da ordem patriarcal que nos governa e que elas detestam e se propõem combater.

Sandra Lee Bartky, analisando a sexualidade feminina (heterossexual), considerou que neste particular caso pode existir conflito entre a estrutura do desejo feminino - um desejo que se inscreva numa relação de domínio/submissão, e os princípios éticos de autonomia e de liberdade que a mulher emancipada defende para si mesma; reconhece ainda que isto constitui de facto um problema de difícil solução: «Que fazer, por exemplo, quando a estrutura do desejo entra em conflito com os princípios de uma pessoa? Esta é uma questão difícil para quem quer que seja consciente, mas é particularmente pungente para as feministas.» *

Embora seja relativamente fácil criticar as estruturas patriarcais opressivas, é difícil, porventura impossível, libertar-se da própria sexualidade - mesmo quando esta implica também uma dimensão opressiva, porque a sexualidade se encontra, ela própria, no âmago do que a pessoa é e constitui a manifestação de instintos poderosos e avassaladores que podemos recalcar, mas não eliminar.
A dimensão opressiva da sexualidade feminina advém da erotização da dominação - elemento fundamental da sensibilidade masoquista: implica não só aceitar como também apreciar a dominação. Mas que mecanismos terão levado a uma situação tão paradoxal? Como foi possível erotizar a dominação quando o anseio de todo e qualquer animal é ser livre? Quando se reconhece que a liberdade é elemento constitutivo essencial da pessoa humana?

Como diz Sandra Lee Bartky: «O que quer que pertença à sexualidade – não apenas o comportamento sexual, mas também o desejo sexual e a fantasia sexual – tem de ser compreendido no contexto de um sistema mais amplo de subordinação; (além de que) a sexualidade deformada de uma cultura patriarcal deve ser deslocada do domínio escondido da vida privada para a arena da luta, onde uma sexualidade de respeito mútuo «politicamente correcta» entra em conflito com uma sexualidade «incorrecta» de domínio e submissão.»*

Assim, para compreendermos esta complexa questão temos de perceber que nas sociedades patriarcais, em que as mulheres têm vivido e em que têm sido socializadas, as relações de poder entre os sexos se mantiveram sempre profundamente assimétricas: os homens têm poder – físico, económico e intelectual, as mulheres, não. Inicialmente o poder físico superior dos homens deve ter sido suficiente para estabelecer a supremacia; a partir deste, e dado o contexto e as vulnerabilidades em que a vida das mulheres decorria, foi possível aos homens monopolizarem o poder económico e o poder intelectual, mantendo-as sempre à margem do processo, através de mecanismos ideológicos de vária índole e servindo-se do mesmo poder para as dominar.

Ora o poder é sempre fascinante, até porque ele é promessa de liberdade; por isso, as mulheres - que não tinham poder nem liberdade, sentiam-se «naturalmente» atraídas por homens física, intelectual ou economicamente poderosos, numa palavra, por homens dominadores. Poder e dominação apareciam associados e protagonizados pela figura masculina; daí decorreu que a atracção que as mulheres sentiam pelo poder, que elas próprias estavam impedidas de protagonizar, suscitou a erotização da dominação que sempre o acompanhava -, apreciar homens poderosos era apreciar homens dominadores e homens dominadores queriam mulheres submissas e queriam mulheres que gostassem de ser submissas. Encontrar prazer na dominação foi uma forma de poder vicariante reservada para as mulheres.

Hoje, em muitos lugares, as circunstâncias sociais em que decorre a vida das mulheres sofreram alterações significativas; por vezes, elas têm o poder por que sempre almejaram, mas isso é esporádico e casual e nem sequer espelha a realidade prevalecente, além de que, o que é mais importante, as estruturas mais profundas da personalidade ainda não foram afectadas por essas alterações de superfície; não admira, pois, que, neste contexto, as mulheres, mesmo quando começam a afirmar-se na esfera pública, continuem a alimentar fantasias sexuais em que imperam a submissão e a dominação; aliás, é bom salientar que - já para não falar na força avassaladora das religiões, a indústria pornográfica, a moda, a publicidade e a indústria de entretenimento dão uma ajuda preciosa para que a sensibilidade masoquista permaneça, pois já perceberam que ela é a chave, ou pelo menos uma das chaves, para manter o domínio sobre as mulheres.

Como foi a relação assimétrica de poder entre homens e mulheres que condicionou a «opção» das mulheres pela sensibilidade masoquista, é de prever que a situação só comece a alterar-se significativamente quando essa relação de poder se tornar equilibrada, permitindo a construção de uma sexualidade, feminina e masculina, saudável, e não deformada, em que a reciprocidade seja regra e não excepção. Para já, a situação continua sombria pois há muitos interesses a lançarem areia na engrenagem.

De qualquer modo, cumpre dizer, e este é um sinal de alguma esperança, que, mesmo quando as mulheres reconhecem fantasias sexuais que consideram «incorrectas», trata-se, ainda assim, de meras fantasias e essas mesmas mulheres não sentiriam qualquer prazer, bem pelo contrário, se essas fantasias passassem para o campo da realidade; é que as fantasias são suas, são elas que as imaginam, que com elas agem, ao passo que sobre a eventual realidade que lhes correspondesse não teriam qualquer agência; é que imaginar que se é dominada, dada a erotização e o glamour com que a dominação é apresentada, até pode ser sexy, mas confrontar-se directa e concretamente com a dominação, salvo em casos decididamente patológicos, não só não é agradável como é profundamente traumatizante, algo que todas as mulheres repudiam veementemente, como um atentado à sua integridade física e psíquica.
*Sandra Lee Bartky: Femininity and Domination: Studies in the Phenomenology of Oppression. Routledge. p. 45

domingo, 21 de março de 2010

«Sexo é Violação»?!

Na década de oitenta do século XX, nos Estados Unidos, os meios de comunicação social repetiram ate à saciedade que Andrea Dworkin (1946-2005), feminista radical norte-americana, teria afirmado: «Sexo é violação».

Dada a notoriedade de Dworkin e seu empenhamento no movimento feminista, facilmente se compreendem as consequências que tal pronunciamento revestiu. Esta frase bombástica, de tanto ser repetida e martelada, transformou-se numa espécie de logótipo do movimento feminista - as feministas odiariam os homens e detestariam o sexo, e foi grandemente responsável pela imagem negativa que o feminismo assumiu que, por sua vez, explica a dificuldade sentida por muitas mulheres de com ele se identificarem.

O irónico é que não é possível encontrar a fonte desta afirmação na obra de Dworkin e ela própria, em entrevista concedida em 1995 à New Statesman & Society, rejeitou tal formulação que teria sido fabricada a partir de afirmações desinseridas de contexto e deturpadas.
Nessa entrevista, Dworkins esclarece que no livro Right-Wing Women afirmou de facto que na medida em que a legislação não permite que o marido seja acusado de violação, nenhuma mulher casada está legalmente protegida; e afirmou ainda que, na medida em que «o casamento obriga às relações sexuais – compulsórias e parte do contrato de casamento, nessas circunstâncias, era impossível entender as relações sexuais no casamento como um acto livre de uma mulher livre.»

Ora, de facto, estas afirmações de Dworkin não permitem de modo algum concluir que para ela sexo entre um homem e uma mulher corresponde sempre a violação; o que ela diz - hoje aceite sem contestação, é que mesmo na relação conjugal pode haver violação e que tal devia estar previsto na lei para protecção da mulher. Dworkin diz ainda, e hoje também não contestamos, que, se no contrato de casamento houver uma cláusula que torne compulsivas e obrigatórias as relações sexuais entre os cônjuges, isto é, que obrigue a mulher a ceder à vontade do marido, a relação sexual não será livre.

Assim, por exemplo, quando hoje nos sentimos escandalizadas ao sabermos que o parlamento afegão aprovou recentemente legislação que obriga as esposas a estarem disponíveis para os seus maridos uns tantos dias por semana, não fazemos mais do que seguir o pensamento de Dworkins nesta matéria; pois não aceitamos que a mulher seja obrigada a ter relações sexuais, mesmo que o parceiro seja o seu marido, porque entendemos que a relação sexual deve ser livre e livremente querida pelos dois. E, no Ocidente, homens e mulheres rejeitaram frontalmente a situação vivida pelas mulheres afegãs que o poder taliban, escondido mas presente, pretende continuar a oprimir. Mas, em 2009, no Afeganistão, onde decorria a manifestação que a imagem documenta, estas corajosas mulheres que sairam à rua para se manifestaram foram apedrejadas pela população e tiveram de ser salvas pela polícia para evitar um desfecho mais dramático.

No passado não tão longínquo, também no país das liberdades, foi preciso «crucificar» Dworkin e com ela o feminismo; mas, graças à coragem desta e de outras feministas, encontramo-nos hoje num estádio em que reconhecemos os nossos próprios desejos e o direito de os outros os respeitarem. Sim significa sim, e não significa não, e são palavras que temos o direito de pronunciar e que os outros precisam de aprender a ouvir.
De resto, Dworkin, embora reconhecesse que o paradigma sexual na generalidade das situações era o paradigma domínio/submissão, manifestou apesar de tudo algum optimismo quando afirmou que «as relações sexuais e o prazer sexual podem e vão sobreviver à igualdade.»

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Sim é sim e não é não

A sexualidade feminina tem sido reprimida através dos séculos, nas diferentes épocas e culturas; essa repressão foi o meio que as sociedades de supremacia masculina utilizaram, e ainda utilizam, para a controlar. É nesse sentido que práticas flagrantemente misóginas como a ablação do clítoris, a proibição do aborto em todas e quaisquer circunstâncias e a negação do recurso a anticoncepcionais devem ser entendidas: controlar os corpos das mulheres, negar-lhes autonomia, é um meio - muitas vezes disfarçado com o apelo a slogans que só tem força porque espaldados em convicções religiosas, de manter a dominação de uns e a submissão de outras.
Por este motivo, desde sempre a educação das jovens as condicionou a resistirem aos avanços masculinos, mesmo se esses avanços eram por elas desejados, e levou ao cultivo de virtudes pretensamente femininas como a modéstia e o pudor, sempre ligadas ao comportamento sexual das mulheres. Por isso é que muitas ainda hoje sentem vergonha em relação ao sexo e se sentem desconfortáveis em falar do assunto, mesmo quando se atrevem a fazê-lo; por isso também é que muitos homens interpretam um não como um sim disfarçado que afinal só coloca, como diria Rousseau, um pouco de pimenta (leia-se excitação) na relação.
Está na hora, todavia, de as mulheres reconhecerem e aceitarem os seus desejos, o seu direito ao prazer sexual, o que significa dizerem sim quando o sexo corresponde ao que no momento realmente querem e dizerem não, e assim serem entendidas, quando por qualquer motivo não estão interessadas. Os homens, de facto, só vão perceber que não significa não, se perceberem que a mulher afinal também tem vontades próprias e o direito de as satisfazer.
Estas considerações foram inspiradas pela leitura de um excelente livro que recomendo vivamente e que podem encontrar na gigapedia; para abrir o apetite traduzo o seguinte excerto:

«No esforço incessante de descrever homens e mulheres como opostos, os homens assumem o papel do agressor sexual e esperam que as mulheres sejam sexualmente evasivas. Embora a virgindade até ao casamento seja praticada por muito poucas mulheres, permanecem profundamente enraizados os padrões de virtude feminina, e as mulheres raramente são ensinadas a como dizer sim ao sexo, ou como agir em função dos seus desejos. Mais, dizem-lhes que na actividade sexual os papéis implicam homens insistentes e mulheres que colocam um travão a essa insistência.
Ao mesmo tempo que isto compromete claramente a subjectividade sexual das mulheres, também desfavorece os homens e impede que eles assumam os seus próprios desejos com autenticidade. Os homens são tão versados na dança sexual quanto as mulheres e se eles estão plenamente convencidos de que se espera que as mulheres digam não, mesmo quando gostariam de dizer sim, estarão pouco inclinados a aceitar um não pelo seu valor facial.»

Jaclyn Friedman e Jessica Valenti: Yes means yes, visions of female sexual power and a world without rape. Seal Press, 2008. Encontram mais informação aqui

sábado, 19 de dezembro de 2009

Orgasmo vaginal e frigidez feminina

«A frigidez foi geralmente definida pelos homens como a incapacidade de as mulheres terem orgasmos vaginais. De facto a vagina não é uma área muito sensível e não está construída para atingir o orgasmo. É o clitoris – equivalente feminino do pénis, que é o centro da sensibilidade sexual.

Penso que isto explica muita coisa:
Em primeiro lugar o facto de a designada frigidez atingir números muito altos entre as mulheres. Em vez de atribuirem a frigidez feminina a falsas crenças acerca da anatomia feminina, os nossos «peritos» declararam a frigidez um problema psicológico das mulheres. As mulheres que se queixavam eram recomendadas para os psiquiatras para eles descobrirem o problema – diagnosticado normalmente como uma incapacidade de se ajustarem ao seu papel como mulheres.

Os factos da anatomia e da resposta sexual feminina contam uma história muito diferente. Há apenas uma área para o clímax sexual, embora haja muitas áreas para a excitação sexual; essa área é o clítoris. Todos os orgasmos são extensões da sensação desta área. Dado que o clítoris não é necessariamente estimulado de forma suficiente com as posições sexuais convencionais, nós «ficamos» frígidas».

Anne koedit, The Myth of the vaginal orgasm, in Public Women, Public Words: A Documentary History of American Feminism, 2003, vol. 3, p.133

domingo, 13 de dezembro de 2009

Masoquismo feminino e dominação masculina

Durante séculos as mulheres têm sido apresentadas como masoquistas, isto é, como pessoas que aceitam o sofrimento e o sacrifício e que mesmo os apreciam. Transposto em termos de sexualidade, o masoquismo explicaria porque as mulheres gostam de homens dominadores e, por isso, , apreciam ser dominadas. Mas vejamos o que Sandra Lee Bartky tem a dizer sobre este assunto:

“O masoquismo feminino, como a feminilidade em geral, é um processo económico de integrar as mulheres no sistema patriarcal através do mecanismo do desejo e, embora a erotização das relações de domínio possa não estar no cerne do sistema de supremacia masculina, seguramente que o perpetua.
Os mecanismos precisos que trabalham para a sexualização da dominação não são claros e seria difícil mostrar em cada caso uma conexão entre um acto ou fantasia sexual específica e a opressão e dominação das mulheres em geral. Do mesmo modo que seria absurdo dizer que as mulheres aceitam salários inferiores aos dos homens porque é sexualmente excitante ganhar 62% de cada dólar que eles ganham, seria igualmente ingénuo insistir em que não há qualquer relação entre a dominação erótica e a subordinação sexual. Seguramente que a aceitação da dominação pelos homens não pode ser inteiramente independente do facto de que para muitas mulheres, a dominância nos homens é excitante.» (Sandra Lee Bartky: The Idea of Prostitution )

Espartilhos, saltos altos, pés enfaixados são apenas alguns instrumentos simbólicos do masoquismo feminino, mas este é natural ou socialmente induzido?

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Se você quer ser dominada, então a violação deve ser a sua prática sexual preferida!

Quando iniciei este blog não me passava pela cabeça que me iria ocupar tão extensivamente com temas relacionados com a sexualidade. Pensava mesmo que poderia passar à margem deles e focar-me em outras situações que objectivamente prejudicam e maltratam as mulheres. Mas à medida que fui progredindo e lendo diferentes textos, comecei a sentir que iria ser impossível não entrar num tema, em que ainda por cima me sentia bastante ignorante; esta convicção foi reforçada quando encontrei uma referência de Catharine Mackinnon, segundo a qual:

«A sexualidade está para o feminismo como o trabalho está para o marxismo, constituem aquilo que mais intimamente nos pertence, mas de que mesmo assim mais somos espoliad@s

Esta declaração deu-me que pensar, sobretudo no que tem a ver com a sexualidade feminina. É que em boa verdade, o que existe é sexualidade masculina que fornece o modelo e a norma do que é a sexualidade e as mulheres devem conformar-se e interiorizar essa norma e esse modelo. E o que é ainda mais grave, segundo me parece, é que nem a generalidade dos homens nem a generalidade das mulheres têm a consciência mínima de que este é um problema, de que ele existe e tem consequências nefastas na vida de muitas pessoas e que é mais uma tremenda injustiça e violência cometida contra as mulheres.

Durante muito tempo, a sexualidade foi aberta e declaradamente definida em termos masculinos e o acto sexual era descrito como culminando com a ejaculação masculina, sem a menor atenção ao que se passava com a mulher. Hoje as coisas não são postas tão cruamente, a não ser no registo pornográfico sexista, mas o que é certo é que o modelo de sexualidade apresentado como norma é o masculino. Este modelo é o de domínio/submissão, típico da sexualidade masculina heterossexual, que parte do princípio, que ninguém questiona, que em termos sexuais as mulheres querem o que os homens querem, não tem vontades próprias, desejam o que o macho deseja e se ele deseja dominar elas então desejam que ele domina e consequentemente desejam ser dominadas. Se as mulheres aceitarem este modelo, e tudo é feito para que tal aconteça, então a violação deve ser uma prática sexual a que nada há a opor, porque nela o domínio de um e a submissão de outra são totais. E nesta ordem de ideias, como algumas feministas defendem, entre sexo (heterossexual) e violação não haveria diferença de natureza, só de grau.
Curiosamente já tinha lido esta aproximação entre sexo e violação e não tinha percebido onde com ela se queria chegar, pois não estava a ver a ligação e, como acontece comigo o que com certeza acontece com outras mulheres que são tratadas com carinho e respeito pelos seus companheiros, parecia-me injusta e questionável tal ligação. Também nunca tive qualquer fantasia de querer ser dominada sexualmente e, como já tive oportunidade de dizer em outros textos, privilegio sempre a reciprocidade na relação sexual, mas quando encontro mulheres que não tem pejo em declarar para quem as quer ouvir que se querem submeter aos seus companheiros, que gostam de homens bem machos, leia-se dominadores, então sem qualquer piedade, o que me apetece dizer-lhes é que, nesse caso, a sua prática favorita deve ser a violação. Essas mulheres não percebem que estão a ser «a voz do dono», não tem sequer a sensibilidade para perceberem que desistiram de construir a sua própria sexualidade para se limitarem a interiorizar a sexualidade masculina. Eu compreendo, mas não perdoo. Sobretudo não perdoo que não se sintam mal consigo mesmas por se terem tornado cúmplices totais do sistema que as oprime.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Quando é que a relação sexual é moralmente correcta?

«Há dois séculos, Immanuel Kant (1724-1804) deu um contributo significativo para uma perspectiva racional sobre a ética ligada ao sexo, quando defendeu que é moralmente errado tratar as pessoas como simples meios para o que cada um deseja e não também como fins em si mesmas. De facto, Kant compreendeu que não conseguimos evitar tratar as pessoas como meios. O que é errado é usá-las meramente como meios, sem reconhecer o seu valor como fins em si mesmas. (…) Em relação ao sexo, Kant disse que fora de uma relação de amor, as pessoas são tratadas como objectos sexuais. Ele deve ter sido a primeira pessoa a denunciar o uso das pessoas como objectos sexuais. Kant sustentou que, fora do casamento, as pessoas são usadas como meros objectos de desejo sexual.

Não precisamos de concordar com Kant de que o casamento é o único modo de evitar o uso das pessoas como meros meios. (…) O elemento básico acerca da incorrecção de usar uma pessoa como um simples meio sustenta-se por si mesmo. A falta moral acerca da qual Kant escreveu continua a ser uma falta. Porquê? Usar uma pessoa como mero meio para os fins de uma outra cria uma relação na qual a pessoa não é respeitada como pessoa e a sua liberdade e desenvolvimento pessoal não são favorecidos. Em tal relação, há uma falta de reciprocidade e mutualidade. Estas faltas tornam a relação sexual moralmente errada. Respeitar totalmente a personalidade e liberdade do outro, ajudá-lo a crescer em capacidade para realizar o seu potencial respeitando o direito do outro a ser ele próprio e não um mero apêndice de cada um, evitar o que quer que o fira e prejudique, aprender a falar em conjunto e a discutir os desacordos honestamente – estas são algumas coisas que tornam uma relação sexual moralmente correcta.»

Don Marietta: Philosophy of Sexuality


sábado, 10 de outubro de 2009

A mal-nutrição erótica das mulheres e o banquete romano dos homens

Vem este título a propósito de um blog que visitei há pouco tempo, no qual se discutia acaloradamente o que as mulheres haveriam de fazer para dar mais prazer aos seus parceiros sexuais; mulheres e homens opinavam e eu resolvi comentar a estranheza - para mim é claro, de estarem tão preocupad@s com o prazer dos homens e não darem a mínima para o prazer das mulheres que, como todos sabemos, ainda hoje constituiu um grave problema de saúde sexual, embora ninguém pareça querer dar-lhe muito atenção, as mulheres por vergonha, os homens por que o problema não é deles…. Claro que de imediato o «galo» daquela capoeira me mimoseou com os insultos soezes que costumam substituir os argumentos mais sólidos. Não lhe ocorreu nem ocorreu aquela corte que de facto, os homens já são privilegiados, e alguém pretender que precisa de se preocupar ainda com as suas carências sexuais é não só caricato como escandaloso. De facto, comparada com a mal-nutrição erótica das mulheres, a frugalidade dos homens assemelha-se a um banquete romano.
Entretanto li um texto que me sugeriu este título e resolvi traduzi-lo; nele a autora, Linda LeMonchec, cita o relato de uma prostituta muito compreensiva para com as necessidades dos homens e igualmente complacente para com as esposas desses homens. Vale a pena conferir:
“Quando a trabalhadora de sexo Valerie Scott diz que a maioria dos seus clientes casados continuam a amar as suas esposas mas que, por vezes, os homens precisam mesmo de uma quebra da rotina, falha em situar a prostituição no contexto da ideologia sexista na qual as mulheres não têm uma saída equivalente para os seus devaneios adulterinos nem um meio de preservarem o estatuto de boa rapariga, se a tiverem. Por isso, mesmo que Scott tenha razão quando diz que «o desejo sexual não substitui o amor» de modo que as esposas queridas não precisam de se sentir ameaçadas pelas prostitutas, não assume a sua responsabilidade pelo facto do seu trabalho como prostituta reforçar o duplo padrão sexual que priva a sexualidade feminina de um erotismo definido nos seus próprios termos.
Como Anne McClintock aponta:
Pode acontecer os homens não terem sexo suficiente; mas também o não têm as mulheres. Os homens têm um acesso privilegiado ao empório da pornografia e da prostituição – para não mencionar também a perenidade do duplo padrão de conduta. O desejo das mulheres, por contraste, tem sido menosprezado e confinado pela triste história de museu dos espartilhos, cintos de castidade, culto da virgindade e mutilação genital. Comparada com a mal-nutrição erótica das mulheres, a frugalidade dos homens parece um banquete romano.

Dado este duplo padrão, o poder que a prostituta afirma ter sobre o seu cliente é temporário e socialmente invisível em relação ao dele; por isso Scott pode não estar a perceber que o poder dela pode facilmente ser subvertido para dar força á objectificação sexual pelo seu cliente da sua puta e da sua esposa (e também da sua secretária e da sua amante…).”

Linda Le Monchec: Lecherous men, loose women

terça-feira, 6 de outubro de 2009

(3) O que é que há de errado com a pornografia?

A pornografia, ao conferir uma dimensão erótica à desigualdade entre os sexos - e aqui estamos a falar em inferiorização e submissão de um em relação ao outro - torna essa desigualdade e inferioridade sexualmente apelativa e desejável: mulheres jovens e fisicamente atraentes mostram-se encantadas por poderem «servir» os homens e colocar-se sob o seu domínio, entregando-se a toda uma série de práticas sexuais que objectivamente devem dar prazer aos homens, mas que, também objectivamente, em si mesmas, pouco ou nenhum prazer lhes devem dar a elas próprias.

A regra de ouro da sexualidade - a reciprocidade, é completamente ignorada pela pornografia: as mulheres fazem sexo oral aos homens, mas os homens não fazem sexo oral às mulheres - pelo menos essa não é a norma; as mulheres masturbam os homens, mas os homens não masturbam as mulheres; mesmo a penetração vaginal é frequentemente preterida pelo sexo anal que, temos de convir, para além de outros inconvenientes, dá provavelmente mais gozo ao homem do que à mulher, pois nesta é acompanhado, senão de dor, pelo menos de algum desconforto. Pode dizer-se, sem sombra de dúvida, que na narrativa pornográfica não há o mais leve indício de que o homem esteja preocupado em dar prazer à mulher, bem pelo contrário parece presumir e quer fazer-nos crer que ela tem prazer quando ele sente prazer o que mostra bem a lógica egocêntrica e falocêntrica que preside a este concepção da sexualidade.

Neste contexto, parece bastante óbvio que os homens que consomem pornografia vão achar muito natural que as suas parceiras alinhem nestas práticas que são mostradas como naturais e prazerosas para as mulheres; se estas também consumirem pornografia, o que é expectável, por influência dos próprios companheiros, vão sentir que não há nada de errado em se submeterem aos desejos dos homens e poderão mesmo achar desejável essa situação que lhes é apresentada como correspondendo ao cúmulo do erotismo.

Num período de crise de paradigma, em que as mulheres começam a questionar a inferioridade que lhes querem impor aos mais diversos níveis, a pornografia dá uma ajuda moderna, é um instrumento de violência simbólica que vai conferir uma aparência de consentimento àquilo que, desmontados os mecanismos subjacentes, não é mais do que adesão extorquida. Aparentemente ninguém obriga as estrelas porno a fazerem os filmes que fazem, ninguém obriga as mulheres a consumirem os filmes que consomem; tudo ocorre na paz dos senhores. Mas, se bem repararmos, a pornografia, ao apresentar como sexualmente desejável uma diferença e uma desigualdade que apenas radica no poder físico e económico superior dos homens, e portanto na coerção, mascara a realidade - o que resulta de imposição passa a parecer decorrer de livre e espontânea aceitação. Concomitantemente, ao proclamar o consentimento da mulher à submissão, legitima essa submissão e suporta o regime de desigualdade entre mulheres e homens, dando uma aparência de consentimento àquilo que é coercivo.

Um outro aspecto a que interessa dar relevo é que a pornografia é consumida no domínio privado, ver filmes pornográficos é uma coisa que as pessoas fazem na intimidade, e com certo resguardo, mesmo quando, o que é agora raro, frequentam um cinema. A pornografia não se discute, não se objectiva e portanto também não se critica; desse modo pode impor às mulheres sem qualquer dificuldade uma concepção de sexualidade que é masculina e pode impedir que elas próprias articulem e exprimam os seus desejos e as suas fantasias, independentes das fantasias dos homens sobre elas, numa palavra pode impedir que «construam» a sua própria sexualidade. A situação ainda se agrava pois as mulheres, já de si pouco interventivas nas áreas do social, dados os condicionalismos da sua educação e existência, sentem normalmente vergonha de abordar directamente estas questões o que acaba por lhes ser profundamente prejudicial.

Em resumo, poderíamos dizer que, por um lado, a pornografia apresenta a submissão da mulher como livremente aceite e desejável; por outro, ao descrever a sexualidade em termos de desejos e fantasias masculinas, impede as mulheres, sujeitas a esse modelo, de articularem os seus desejos e fantasias e de exprimirem a sua sexualidade no que ela tenha de específico. Claro que tudo isto será irrelevante para quem considerar que a especificidade da sexualidade da mulher é agradar e submeter-se ao homem - que é o caso da pornografia e que infelizmente um grande número de homens, e até de mulheres, aceita como normal e desejável.
P.S. Não sei se é preciso, mas para evitar qualquer dúvida, devo esclarecer que a minha abordagem em relação à pornografia não é de modo nenhum moralista, no sentido da moralidade positiva; não a condeno por ser obscena ou por dissociar o sexo do amor, condeno-a num sentido ético porque penso que ela manipula as mulheres e trata-as muito mal. Penso que sexo e amor é bom, mas aceito que sexo sem amor também pode ser bom. Digo tudo isto em adenda, porque sei que muit@s costumam olhar aquel@s que criticam a pornografia como pessoas que não gostam de sexo ou têm preconceitos em relação ao sexo, para assim fazerem passar a sua mensagem, descredibilizando quem se lhe opõe.

sábado, 3 de outubro de 2009

Legalizar a prostituição?!

Há muito boa gente, algumas feministas incluídas e também prostitutas, que advogam a legalização da prostituição com base nas consequências nefastas que a sua ilegalização acarreta em termos de exploração e de saúde pública e que defendem que a prostituta se limita a prestar um serviço contratualizado a um cliente - vender sexo seria como vender outra coisa qualquer, seria um serviço como qualquer outro, devendo-se apenas evitar a exploração, a coerção ou a fraude. Em tais termos, pressupondo consentimento entre as partes, nada haveria a opor e a condenação da prostituição por esquerdas e direitas seria apenas atribuível a resquícios de um moralismo passadista que tende a encarar o sexo como algo que detém uma enorme carga de negatividade. Estas pessoas consideram que a prostituição é condenada pela moralidade positiva - expressa na opinião pública, nos costumes e nas leis – mas este tipo de moralidade costuma abrigar sempre um certo números de preconceitos, isto é, de ideias feitas que se aceitam como válidas, que não foram escrutinadas pela razão; consideram ainda que a moralidade crítica pode por em causa a moralidade positiva e será capaz de denunciar as suas falácias e preconceitos.

De facto, concedo que a moralidade tradicional, pelo menos a de raiz religiosa, encara o sexo como algo mau, ou até mesmo pecaminoso, que só tem legitimidade enquanto meio para a procriação, ou quando muito, para reforçar a união do casal e dar-lhe estabilidade para criar os filhos. Para ela, é o casamento que é estimável enquanto instituição social, não são os indivíduos, não é o casal que é importante. Mas penso que numa perspectiva que aceite o sexo e o legitime enquanto fonte de prazer, esta condenação da prostituição deixa de ser consistente.

Por outro lado, condenar a prostituição com o argumento de que é nociva para quem a pratica: doenças venéreas, humilhação, violência por parte dos clientes, exploração por donas de casa de prostitutas e por gigolôs, é um argumento paternalista que, enquanto tal, não resiste ao escrutínio crítico e por outro é até contraproducente porque pode sempre mostrar-se que estes males advém do facto da prostituição se encontrar condenada e ilegalizada e de se estigmatizar a figura da prostituta. A falácia de tal argumento é que mesmo que seja verdade o que nele se diz, isso não é suficiente para condenar moral ou legalmente a prostituição, é quando muito um argumento prudencial: não é aconselhável ser prostituta, mas a partir daí nada mais se pode adiantar.

Afastados estes dois argumentos pela sua inconsistência, fica por considerar aquele que me parece realmente sólido e que afirma que a prostituição não se pode legalizar porque atenta contra os direitos inalienáveis da pessoa humana: a prostituta aceita ser tratada como um simples meio para o cliente atingir o fim que se propõe - satisfação sexual; aceita ser reduzida à condição de objecto sexual. E não só é reduzida ao estatuto de objecto o que já por si é degradante como tem ainda de se mostrar cooperativa na sua própria degradação: tem de «funcionar» de determinada maneira, tem de se empenhar num papel determinado para prover à satisfação sexual do cliente, tem de se mostrar submissa e subserviente em relação aos desejos do cliente. O facto de ela concordar com o «negócio» em certo sentido ainda piora a situação porque como o «negócio» se realiza no contexto da sociedade patriarcal, com a sua anuência, ela acaba por reforçar e aceitar a inferiorização e o domínio e controlo sexual do homem sobre a mulher que ela representa. O que a prostituta vende não é, como se pretende - não se sabe se com ingenuidade se com má fé, um simples serviço, de facto, ela vende-se a ela própria por um determinado lapso de tempo, anula-se como pessoa. Enquanto, por exemplo, o trabalhador de uma fábrica vende a sua força de trabalho, mas isso não o impede de continuar a existir como pessoa, tal não acontece com a prostituta que não se consegue alienar do que está a vender. Parece-me que esta peregrina ideia do serviço que o corpo da prostituta realizaria decorre de uma concepção dualista do ser humano que defende que este é um composto de duas realidades independentes, o corpo (que se tem, à maneira de uma coisa) e o espírito (que se é, que constitui a essência da pessoa), a ser assim, pode advogar-se que a prostituta vende o corpo, mas preserva o espírito; todavia esta concepção é como sabemos apenas mais uma concepção religiosa e hoje de uma maneira ou de outra tod@s estamos cientes de que nós somos corpo, um corpo que sente, deseja, pensa e que não podemos pensar, sentir, desejar sem corpo, portanto quando se vende o «corpo» vende-se aquilo que se é.

Parece-me que esta linha de argumentação pode fornecer um apoio sólido a quem, apesar de reconhecer e lamentar a exploração a que as prostitutas estão sujeitas, não concorda com a legalização de tão sórdido negócio, porque de facto a degradação da prostituta também é, embora remota e indirectamente, a degradação de todas as mulheres e ainda mais indirectamente de todo e qualquer ser humano. Não se pode de modo nenhum resolver o problema da legalização da prostituição ouvindo apenas as prostitutas, tem de se ouvir acima de tudo as mulheres e também os homens, apesar da perspectiva destes na maioria dos casos estar enviesada, porque o que as prostitutas fazem, embora em minha opinião seja nocivo para elas – mas essa é apenas a minha opinião, é nocivo para as mulheres em geral, para mim em particular e para a dignidade do ser humano.
Assim, a legalização da prostituição é um assunto em que temos de ser ouvid@s, a decisão não nos pode passar à margem. E isto, para as mulheres, nada tem a ver com paternalismo, ou maternalismo, tem a ver com consciência de classe, uma coisa que tem andado muito arredada dos nossos pensamentos.
P.S. Sei que muito boa gente não concorda com a tese aqui defendida, convido quem quiser colaborar a apresentar brevemente e a defender o seu ponto de vista.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

A prostituição não é degradante apenas para as prostitutas, é degradante para todas as mulheres

Às voltas com o complexo problema da prostituição, não resisto a transcrever um texto que li recentemente e que me parece explicar o mal-estar que eu própria sinto em relação às prostitutas e à prostituição. Sempre intui que este não era apenas um problema que dissesse respeito às prostitutas, pelo qual eu poderia sentir simples preocupação social e intelectual; algo me dizia que havia mais qualquer coisa e essa qualquer coisa foi o que agora descobri : a prostituição não degrada apenas a prostituta, degrada-me também a mim enquanto mulher.

«A prostituição[1] é degradante porque a prostituta trata-se a si mesma e permite que outros a tratem como uma mercadoria a ser comprada e vendida no mercado livre. Evelyne Giobbe caracteriza a indústria do sexo como aquela na qual «os corpos das mulheres e das crianças» são comprados, vendidos ou negociados para uso e abuso sexual. Diana Russell e Lauda Ledere fazem notar que «mesmo a pornografia mais banal objectifica os corpos das mulheres». De acordo com este ponto de vista, a prostituta não se trata a si mesma como uma pessoa cujos sentimentos, interesses e necessidades são dignos de respeito, como os de qualquer outra pessoa. Ela é tratada como um simples corpo, brinquedo, instrumento, propriedade ou animal doméstico para ser usada e abusada pelos homens que a compram. Não apenas o seu trabalho a define como subordinada sexual do homem, mas o seu trabalho, na medida em que parece que ela o escolheu, encoraja e reforça a ideia de que o seu maior prazer é estar ao serviço do homem e de que o que ela quer e precisa dos homens é que eles a usem e dela abusem.
A partir desta perspectiva, porque a prostituição está inserida num contexto patriarcal cuja ideologia sexual é já à partida a que define as mulheres em termos da sua disponibilidade em relação aos homens, a prostituição reforça simplesmente a visão de que todas as mulheres, mesmo aquelas que não a escolheram, desejam dedicar a sua vida ao serviço sexual do homem.
As feministas argumentam que estas falsas crenças acerca das mulheres não apenas são degradantes em si mesmas, mas também resultam inevitavelmente na exploração sexual e na violação das mulheres percebidas como objectos sexuais colocados incondicionalmente ao serviço dos homens. … A prostituição encoraja a exploração das mulheres e promove a tolerância e o exercício da violência contra as mulheres.”[2]

[1] No original o termo é “sex work” que envolve também pornografia e outras práticas afins
[2] Linda Le Moncheck: Loose Women, Lecherous Men

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Com os sexólogos todos os cuidados são poucos …



Na década de sessenta do século XX, sexólogos de renome, como Harry Benjamin, Alex Comfort e William H. Master, tentaram passar a ideia de que não há nada de errado com a prostituição - desde que as prostitutas escolham livremente dedicar-se a essa actividade – defendendo que só um preconceito social, alimentado em boa parte por alguns sectores feministas, não permitia aceitar essa realidade.

Com estas sonantes declarações procurava criar-se um clima liberal favorável que tornasse socialmente aceitável a prostituição. Estes sexólogos, numa época em que em vários países começava a surgir legislação anti-prostituição, alegavam que tal legislação teria funestas consequências sociais pois seria responsável por um aumento significativo da homossexualidade, da violência contra crianças, violações, e outras ofensas sexuais, já que a prostituição funcionaria como uma espécie de válvula de escape contra comportamentos desviantes. Entre estas afirmações e as que foram produzidas por Tomás de Aquino no século XIII não há, como podemos conferir, diferenças substantivas: «A prostituição no mundo é como a imundície no mar ou o esgoto num palácio. Retira o esgoto e encherás o palácio com poluição; o mesmo acontecerá com a imundície do mar. Afasta as prostitutas do mundo e irás enchê-lo de sodomia…» Umas e outras reproduzem discursos falaciosos pois pretendem que não se aceite uma tese - neste caso a da eliminação da prostituição, com base nas consequências que dela resultariam - é a conhecida falácia da bola de neve.

Em relação a punições e à criminalização da prostituição era muito interessante o tipo de argumentação que esses sexólogos utilizavam: quanto às prostitutas, embora não concordassem com a penalização, ainda podiam entendê-la, mas em relação aos homens que usavam prostitutas penalizá-los seria, diziam, uma irresponsabilidade, pois que se tratava de pessoas respeitáveis, pais de família, homens de negócios, pacatos cidadãos, isto é, como diz Scheila Jeffreys (1), «os homens não deviam ser tratados da mesma maneira que as mulheres porque os homens eram importantes».
Por outro lado, esses mesmos sexólogos apresentavam as práticas sexuais dos homens com prostitutas como se estas correspondessem ao que o sexo deveria ser, e indirectamente forneciam o modelo para a construção da sexualidade feminina que tomaria por base a erotização da submissão da mulher ao homem, controlador e dominador. Neste aspecto, imitavam os seus confrades do século XIX, da era Vitoriana, que pretendiam fornecer uma visão «científica» da sexualidade masculina, considerando que esta supunha a natural submissão da mulher e o desejo que esta tinha de ser dominada pelo homem.
Por tudo isto se compreende a posição arrojada do psiquiatra Thomas Szasz que considera tal sexologia como um ramo da indústria do sexo que fornece o «imprimatur» da ciência às práticas desta indústria, ou ainda de Steven Marcus que em «The Other Victorians» considera que esta pretensa ciência do sexo incorpora os valores e os métodos da pornografia.
(1) Scheila jeffrey: The Idea of Prostitution

domingo, 20 de setembro de 2009

(2) O que é que há de errado com a pornografia?

Suponho que a pornografia não precisa de ser necessariamente sexista, mas a que anda por aí para consumo da comunidade sexualmente activa, predominantemente a masculina, é sexista e é sobre esta que vou hoje escrever.

Os filmes porno apresentam mulheres jovens com atributos físicos que os machos valorizam: seios volumosos, «bunda» protuberante, pernas esbeltas, rostos convencionalmente bonitos, e homens, nem sempre tão jovens nem tão dotados em termos de beleza, mas que revelam pujança física e exibem normalmente um pénis avantajado, para dizer o mínimo. Depois, através de uma narrativa imagística em que a história é praticamente inexistente, são oferecidas cenas de sexo explícito, com as mais diferentes posições e opções, que normalmente terminam em abundante ejaculação masculina que a jovem, ou jovens acham muito apetitosa e digna de autêntica veneração. A figura dominante é sempre a do macho, as protagonistas estão ali para o adorar e para se submeterem ao seu poder e aos seus desejos.

Vejamos agora porque é que a pornografia (pelo menos este tipo de pornografia) deve ser denunciada e criticada. Não falo em proibição porque julgo que no contexto em que vivemos seria provavelmente impraticável.

A pornografia erotiza a desigualdade entre os sexos - e aqui estamos a falar em inferiorização e submissão de um em relação ao outro, ao tornar essa desigualdade e correspondente inferiorização sexualmente atraentes: mulheres jovens, com atributos físicos que os padrões estéticos dominantes valorizam, mostram-se encantadas com tudo o que fazem, mesmo que o que fazem seja considerado consensualmente degradante por todos os que se propuserem analisar a situação com um mínimo de espírito crítico e mesmo que aquilo que fazem - seja de presumir - não lhes dê de facto nenhum prazer.

A pornografia transpõe para o sexo duro e cru um padrão de comportamento que a sociedade tradicionalmente atribuiu às mulheres: as mulheres ao serviço dos homens, empenhadas acima de tudo em agradar-lhes, sendo submissas e cooperantes. Mas faz mais, numa época em que este padrão de comportamento começa a mostrar sinais de erosão pois cada vez mais e mais mulheres não se comportam em conformidade com ele, a pornografia mente descaradamente em todos os sentidos, mente porque as imagens que mostra, pelo menos da parte de muitas das actrizes porno, ressumem fingimento e falsidade e mente enquanto narrativa sexual ao mostrar o sexo completamente divorciado de qualquer gesto de ternura ou sequer de atenção em relação às mulheres .

O objectivo da pornografia é vender um produto e vender associado um modelo de mulher que reflecte a misoginia de uma sociedade que começa a perceber que não vai continuar a controlar eternamente as mulheres, mas que esperneia enquanto pode.
A imagem que escolhi é a antítese da pornografia e desse modo resume bem o que ha de errado com a pornografia

terça-feira, 15 de setembro de 2009

(1) O que é pornografia? Uma definição problemática

Uma definição selecciona, reflecte e mesmo desfigura a realidade, que é sempre mais rica e que com dificuldade se deixa encerrar e limitar por ela, mas, para nos entendermos, e sobretudo para argumentarmos, não podemos dispensar as definições; estas são as premissas das quais deduzimos outras que nos levam a conclusões e, nesse sentido, à defesa de determinadas teses.
A definição de que partirmos condiciona a conclusão a que chegamos e o curso de acção que consideramos preferível, por isso, não é irrelevante o modo como definimos um conceito, mais especificamente ainda no caso da pornografia que, como sabemos, se encontra longe de ser um domínio consensual. Mas, embora não haja unanimidade, podemos, considerar a existência de três tipos de definições de pornografia, vejamos essas diferentes definições.

(1) Há quem defina pornografia como a exposição obscena do corpo humano e da actividade sexual, ligando portanto pornografia e obscenidade, sendo obscenidade a característica daquilo de que não é decente falar ou apresentar em público; assim, por exemplo, o acto sexual na privacidade da vida de um casal não será obsceno, mas a exposição pública do mesmo será considerada indecente porque decorre «fora da cena» que lhe é apropriada. Esta definição de pornografia foi a dominante - para muitos sectores da sociedade ainda é, e decorre de um enquadramento moral normalmente de fundamento religioso.

(2) Para outros, a pornografia é uma narrativa, através de imagens, da sexualidade humana, é uma espécie de discurso sobre esse tema e enquanto discurso sobre uma realidade goza do direito de liberdade de expressão que as sociedades democráticas garantem aos diferentes tipos de discurso.

(3) Por último, encontramos uma terceira definição, mais recente, que ficou a dever-se às autoras feministas Catharine Mackinnon e Andrea Dworkin, que identifica a pornografia não com um discurso ou um pensamento, mas com um acto, um acto no qual se explicita a subordinação sexual da mulher ao homem, através de imagens e/ou palavras. Enquanto acto que explicita a subordinação de um sexo a outro, com a equivalente depreciação que incorpora, a pornografia incorreria na possibilidade de poder ser indiciada como um atentado aos direitos humanos na pessoa das mulheres.

Cada uma das definições tem implícita uma dinâmica própria que importa analisar. À definição de pornografia como obscenidade pode objectar-se que o conceito de obsceno é de tal modo vago e relativo que fica difícil operar com ele, lembremos, por exemplo, que, no século XIX, falar em público em práticas anticoncepcionais era considerado obsceno e quem o fizesse podia incorrer em comportamento criminal. Por outro lado, é uma definição que implica um valor moral colocado apriori, isto é, parte da ideia que a pessoa faz do que é moralmente correcto e encontramo-la ligada à moral religiosa que propende a depreciar o corpo e a sexualidade e por isso a desaprovar a sua exposição.
A definição da pornografia como discurso e narrativa da sexualidade humana permite assegurar-lhe livre-trânsito, constitucionalmente protegido pelo Estado laico que garante liberdade de expressão aos indivíduos, e permite ainda subtraí-la ao domínio da moral e seus valores. Mas esta definição perdeu a ingenuidade, que aparentemente comporta, a partir do momento em que Mackinnon e Dworkin entraram em cena e apresentaram a sua própria definição de pornografia que veremos em seguida.

A definição de pornografia como acto que explicita e promove a subordinação da mulher ao homem, construída por Mackinnon e Dworkin a partir de evidência empírica de material pornográfico analisado, especificamente filmes pornográficos, reconhece que a pornografia não é simples expressão da sexualidade humana, nem é apenas o reflexo do sexismo da sociedade em que vivemos. A pornografia aparece como uma indústria e como toda a indústria produz um produto. Nesta caso o produto é a subordinação das mulheres, um produto complexo pois a pornografia, começando por ser ela própria produto da desigualdade social entre homens e mulheres, acaba por produzir também essa desigualdade ou, se quisermos, por reforçá-la e, enquanto tal, constitui uma violação dos direitos civis.
Mackinnon e Dworkin recusaram-se a entender a pornografia como um assunto moral no sentido vulgar do termo, de obsceno ou indecente, porque expõe o sexo; para elas, não é aí que o problema da pornografia reside; o problema da pornografia é que ela discrimina as mulheres, é um mecanismo de discriminação que prejudica gravemente as mulheres. Esta definição de pornografia tem o mérito de tornar visível o que estava antes dela invisível e que a definição de pornografia como discurso permitia continuar a encobrir.

Antes de avançarmos, convém fazer o ponto da situação. A definição de Mackinnon e Dworkin, apesar de ter trazido à crua luz do dia algo que se encontrava numa confortável penumbra, apresenta algumas dificuldades; ela foi estabelecida a partir de evidência empírica da pornografia existente no mercado, mas a existência, avassaladora é certo, desse tipo de pornografia não exclui a hipótese de ser produzido outro tipo de pornografia que não explore o sexo dessa maneira; ora, se isso acontecer, isto é, se aparecer um contra-exemplo, a definição deixará de ser apropriada. E se aparecer um contra-exemplo, então a segunda definição vai surgir como mais abrangente e correcta.
De qualquer modo, como, em minha opinião, a produção pornográfica dominante parece integrar-se na definição que Mackinon e Dworkin propuseram é dela que irei partir.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

A «Inveja do pénis» - uma mistificação da cultura falocêntrica

Freud, criador da psicanálise, escrevendo nos finais do século XIX e princípios do século XX, em plena era Vitoriana, defendeu que a inveja do pénis por parte das meninas e o receio de castração dos rapazinhos eram elementos que haveriam de entrar na constituição respectivamente da sexualidade feminina e da sexualidade masculina.

Sempre tive muita dificuldade em aceitar ou sequer compreender esta tese que, a ser verdadeira, deveria corresponder a algo experimentado por todas as mulheres, coisa que de facto comigo nunca aconteceu e penso que com outras mulheres também não. Pareceu-me que Freud estaria a confundir especulação metafísica com realidade. Por isso, foi uma surpresa muito positiva ler o texto de Lois Tyson - que a seguir traduzo, o qual explica de forma soberba e sem deixar lugar a dúvidas o que é isso de inveja do pénis e de receio de castração:

«Muitas mulheres, feministas ou não, têm dificuldade em acreditar que as meninas, depois de descobrirem que os rapazes têm pénis, sofrem de «inveja do pénis», ou do desejo de ter um pénis, ou que os rapazes, depois de descobrirem que as meninas não têm pénis, sofrem de ansiedade de castração, ou do medo de perder o seu pénis. Contudo, a explicação destes dois fenómenos é clara, quando nos apercebemos do contexto cultural em que Freud os observou: a rígida definição de papéis da sociedade Vitoriana, que era usada para oprimir as mulheres de todas as idades e para elevar os homens a posições de dominância em todas as esferas da actividade humana.
Será de estranhar que uma menina queira (pelo menos a nível inconsciente) ser um rapazinho, quando percebe que os rapazinhos têm direitos e privilégios a que se supõe que ela nem sequer deve aspirar? Por outras palavras, quando você vê «inveja do pénis» leia «inveja do poder». É o poder e tudo o que parece acompanhá-lo – auto-estima, divertimento, liberdade, segurança em relação à violação física pelo sexo oposto – que as rapariguinhas invejam.
E o que o rapazinho sente - depois de perceber a sua superioridade social e o poder que esta comporta em relação às meninas – não será ansiedade pela possibilidade de o perder? A frase “É uma menina ou um mariquinhas”, tem o condão de ferir os rapazinhos (e também os rapazes grandes) porque os ameaça com essa perda de poder. A ansiedade da castração é assim melhor compreendida como o receio de ser removido para a posição de ausência de poder ocupada pelas mulheres.» (1)

(1) Lois Tyson: Critical Theory Today

sábado, 12 de setembro de 2009

Os orgasmos das mulheres e a incompetência dos (alguns?) homens

Dada a delicadeza do tema que hoje vou tratar, decidi traduzir um texto de quem se dedicou ao seu estudo e tem portanto uma voz autorizada; espero assim dar um contributo positivo, evitando o tom chocarreiro com que um assunto tão importante é com freqência abordado. Não quer dizer que não se possa brincar, mas a brincadeira também é uma coisa séria:

“Espera-se que as mulheres experimentem paixão durante a relação sexual, quesito básico do comportamento sexual. Contudo, a grande maioria das mulheres (cerca de 70%) não atingem o orgasmo como resultado da relação sexual (Gupta & Lynn, 1972; Hite, 2003). A natureza colocou a fonte primária do prazer do homem no pénis (ponto de contacto durante a relação sexual) ao mesmo tempo que na mulher ela se localiza a certa distância da vagina (no clitóris, situado acima da vagina). Este arranjo, designado por «vagina - clitóris fiasco», implica que o orgasmo conseguido apenas por penetração vaginal não seja o normal para a mulher. Como resultado, há grandes diferenças de género nos motivos para cada um se entregar ao acto sexual, com o homem a enfatizar o orgasmo e a mulher a acentuar a intimidade sexual. No entanto, a descrição cultural da relação sexual (por exemplo, nos filmes e na pornografia) mostra enganadoramente a mulher a atingir o clímax no decorrer do acto sexual, tal como o homem, o que pode levar a maioria das mulheres a acreditarem que há algo errado com elas, se não conseguirem atingir o orgasmo apenas com a relação sexual.

A ideia de que nas mulheres «qualquer coisa está em falta» (isto é, são inadequadas) é uma ameaça que integra muitas crenças culturais acerca da experiência de ser mulher. Freud, numa proclamação que ficou famosa, chamou a isso «inveja do pénis», mas não há evidência empírica que o suporte.
Parece mais provável que as mulheres se sintam sexualmente inadequadas porque esperam que os seus corpos se realizem em paralelo com o do homem durante o acto. Quando isso não acontece, as mulheres podem sentir-se forçadas a simular o orgasmo para agradar aos seus parceiros, pretendendo que a sua resposta biológica é equivalente à deles (Hite, 2003). Não é de surpreender que isto possa levar a ressentimentos em relação ao homem, não apenas pela pressão implícita que sentem para simular o orgasmo (para que os homens possam sentir que «se portaram à altura»), mas também pela diferença de género no prazer sexual (Kamen, 2002; Lavie-Ajayi, 2005).

Freud ligou a inveja do pénis ao facto de que os órgãos sexuais masculinos são visíveis, enquanto os das mulheres estão em grande parte escondidos. A ideia de que as mulheres são «homens defeituosos» porque a sua genitália está escondida remonta a Aristóteles e desde então tem influenciado a teoria biomédica ocidental. Contudo ... parece que os homens (não as mulheres) sofrem de inveja do pénis (isto é, desejo de um pénis maior). Além de que, em termos de puro estado de facto, as mulheres podem ter vantagem. Nas mulheres, a geografia das terminações nervosas dedicadas ao prazer e de tecido que é estimulável durante a excitação abrange uma área que é «pelo menos tão grande, se não maior do que as terminações nervosas e tecidos devotados ao prazer nos homens (Sherfey, 1973). Assim, como a ponta de um icebergue, o próprio clitóris é apenas a porção visível de um vasto conjunto anatómico de tecidos capazes de responderem sexualmente.
Por outras palavras, as mulheres não têm poucos recursos no que diz respeito ao prazer sexual. Contudo é mais provável que elas requeiram actos sexuais que não envolvam a relação sexual propriamente dita (por exemplo, estimulação oral ou manual) para atingirem o orgasmo. Por causa da primazia que culturalmente é atribuída à relação sexual enquanto acto e das falsas concepções em relação aos corpos das mulheres é mais provável que as mulheres não atinjam tanta satisfação sexual quanto os homens."

Laurie A. Rudman and Peter Glick: The Social Psychology of Gender: How Power and Intimacy Shape Gender Relations

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

(9) Sexo e amor em Erich Fromm - experiência orgíaca e supressão da ansiedade

Erich Fromm (1900-1980) foi um psicanalista alemão de inspiração marxista que em « The Art of Loving» nos deixou as suas reflexões sobre sexo e amor.
Tal como Sartre, também Fromm considera que para compreender o sexo e o amor é preciso partir de uma teoria da natureza humana e entender que o ser humano, arrancado à natureza a que os outros animais estão confinados e a que se adaptam através de práticas instintivas, se encontra numa situação de ruptura com ela que provoca estranhamento e terrível ansiedade que tem origem na indefinição em que se encontra, só quebrada pela inevitabilidade da morte.

No ser humano, a razão, que toma o lugar dos instintos, leva a que o homem se veja como uma consciência separada do mundo e dos outros que apreende dolorosamente os seus limites - entre o nascimento que não desejou e a morte que teme, e que se sente isolado e impotente face a forças que não domina. É nesse estranhamento do homem frente à natureza e aos outros seres humanos que radica a terrível e insuportável angústia que experimenta.

Dada esta condição, o primeiro e fundamental problema que o ser humano vai ter de resolver, obviamente depois de garantidos os recursos necessários à subsistência material, é o de superar essa separação e esse insuportável sentimento de angústia. A solução dependerá do contexto e das idiossincrasias pessoais e pode encontrar-se na procura ascética, nas religiões, na conquista de poder sobre os outros, na procura da sabedoria, na criação artística, e também no amor humano, sendo esta última solução uma das que aparentemente é mais acessível ao comum dos mortais.
Considerando este último aspecto - o amor entre os seres humanos como solução para ultrapassar o estado de separação e de isolamento a que se encontram condenados, Fromm interpreta as experiências orgiásticas, que fazem parte de muitos rituais tribais antigos, como a procura da solução para esse problema e em conformidade vê no sexo e na procura do orgasmo o mesmo objectivo de anular o mundo e com ele anular também o sentimento de estranhamento e de solidão que faz parte constitutiva do ser humano:

“Um meio de alcançar este objectivo encontra-se em todo o tipo de estados orgiásticos. Estes podem assumir a forma de transe auto-induzido, por vezes com a ajuda de drogas. Muitos rituais das tribos primitivas oferecem uma gravura vívida deste tipo de solução. Num estado transitório de exaltação o mundo exterior desaparece e com ele o sentimento de separação. Na medida em que estes rituais são praticados em comum, uma experiência de fusão com o grupo é acrescida o que torna esta solução tanto mais efectiva. Proximamente relacionada com e por vezes misturada com esta solução orgíaca, está a experiência sexual. O orgasmo sexual pode produzir um estado similar ao que é produzido por um transe, ou pelos efeitos de certas drogas. Ritos de orgias sexuais comuns faziam parte de muitos rituais primitivos. Parece que após a experiência orgíaca, o homem pode continuar durante algum tempo sem sofrer demasiado com a separação. Lentamente a tensão da ansiedade cresce, e então é de novo reduzida pela realização repetida do ritual.” (1)

Se o sexo, com a experiência do orgasmo, resolve, ainda que por breves momentos, o isolamento e estranhamento do ser humano, se a experiência orgíaca torna a solução mais efectiva, podemos começar a perceber que a sexualidade humana tem uma função que a afasta nitidamente do reducionismo biológico e fisiológico e começamos também a perceber porque é que os seres humanos dão tanta importância ao sexo e, mesmo contra os costumes instituídos, alguns, nostálgicos de velhos rituais tribais, procuram práticas de sexo em grupo, apesar da intolerância da sociedade face a essas práticas. Mas Fromm considera que “o acto sexual sem amor nunca preenche o vazio entre dois seres humanos, a não ser momentaneamente”. E o amor é uma arte que exige enorme investimento: disciplina, concentração, fé racional e paciência.
(1) Erich Fromm: The Art of Loving