O conceito de escolha é um conceito fundamental e tem permitido justificar muitas situações, algumas que repugnam a muito boa gente, como é, por exemplo, o caso da prostituição, vendo-se os opositores à legalização desta prática em dificuldade para objectarem ao tipo de argumentação que a ele recorre. Diz-se, assim, que, no caso de o sexo entre a prostituta e o cliente ser consensual, nada podemos objectar, nem temos o direito de interferir. E este é apenas um exemplo, entre muitos outros. Mas precisamos de reflectir sobre este conceito, se quisermos analisar as situações com espírito crítico.
O conceito de escolha, tal como a teoria liberal o entende, pressupõe que ela seja individual, mental e implique ausência de constrangimento; tudo aspectos aparentemente essenciais e inócuos. Mas insistir enfaticamente nestes três aspectos, sem os contextualizar, como Foucault denunciou, pode tornar a escolha ilusória e falaciosa porque:
(1) Ao afirmar-se que a escolha é do indivíduo, esquece-se que o indivíduo não é um átomo isolado, separado do contexto social e cultural em que a escolha ocorre; esquece-se que, para se falar em escolha, é preciso que existam opções credíveis entre as quais possamos, de facto, escolher. Por exemplo, se eu não tiver propostas de emprego compatíveis com as minhas habilitações universitárias, não se pode dizer que escolhi ser recepcionista.
(2) Ao considerar-se a escolha como um acto mental, algo que resulta de deliberação, esquece-se o contexto físico em que a escolha ocorre e as limitações que este pode impor. Por exemplo, se uma mulher, vítima de violência doméstica, não tem outro local para residir nem o apoio de amigos ou familiares, é nitidamente falacioso dizer que ela escolhe ficar com o abusador.
(3) Ao entender-se a escolha como ausência de constrangimento, esquece-se que o poder encontra sempre novas estratégias para a condicionar; esquece-se que o poder não é só repressivo, mas também é criativo. Por exemplo, pode ser que ninguém obrigue uma mulher a usar sapatos de salto alto, nitidamente prejudiciais à sua saúde, mas não se pode ignorar que estes têm sido sempre associados a glamour, sexualidade e poder e que, desde a mais tenra infância, as meninas aprendem que o sapatinho de cristal da Cinderela não serve a mulheres feias!
Clare Chambers escreveu: «O trabalho de Foucault evidencia três problemas do enfoque liberal na escolha. Primeiro, porque a escolha é individual, o enfoque do liberalismo na escolha marginaliza a sua localização social na cultura. Segundo, porque a escolha é mental, o enfoque do liberalismo na escolha marginaliza o papel do enquadramento físico. Terceiro porque o liberalismo concebe a escolha como ausência de constrangimento, o enfoque do liberalismo na escolha ignora os elementos criativos do poder.»*
O conceito de escolha está assim relacionado com o de poder e com os mecanismos que o poder utiliza para controlar situações e pessoas; Foucauld fala nas «tecnologias do poder»: «os novos métodos de poder cujo modo de operar é assegurado não pelo direito, mas pela técnica, não pela lei, mas pela normalização, não pela punição, mas pelo controlo, métodos que são utilizados a todos os níveis e em todas as formas, que vão para além do Estado e seu aparelho.»*
Foucauld evidencia assim que o controlo não é apenas obtido por mecanismos repressivos, pode também ser conseguido de forma mais criativa, por mecanismos extremamente subtis e difíceis de identificar; mas este segundo aspecto foi completamente omitido pela filosofia política liberal que insistia na necessidade de garantir direitos às pessoas, julgando que desse modo poderia limar os dentes da repressão, mas, como não fez a destrinça entre poder repressivo e poder criativo, assistimos a sociedades em que, embora haja mecanismos formais que garantem os direitos das pessoas, na prática esses mecanismos muitas vezes não funcionam e, por isso, a par com a igualdade formal assistimos a tremendas desigualdades fácticas. Não basta limitar o poder do Estado: garantir liberdades formais não vai garantir a autonomia das pessoas porque o poder criativo vai encontrar formas de a limitar ou impedir. Por isso temos de estar particularmente atent@s a coisas aparentemente tão inofensivas como a indústria de entretenimento, a moda, a publicidade ou a pornografia porque hoje o controlo passa por aqui. Infelizmente a maioria das pessoas ainda não o percebeu.
*Clare Chambers: «Sex, Culture, and Justice» Pensylvania University Press, 2008.
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