Suponho que muitas mulheres e particularmente muitas feministas, mais conscientes e habituadas a pensar criticamente, convivem mal com a sua sexualidade já que esta, enquanto «constructo social», não pode deixar de reflectir as estruturas opressivas da ordem patriarcal que nos governa e que elas detestam e se propõem combater.
Sandra Lee Bartky, analisando a sexualidade feminina (heterossexual), considerou que neste particular caso pode existir conflito entre a estrutura do desejo feminino - um desejo que se inscreva numa relação de domínio/submissão, e os princípios éticos de autonomia e de liberdade que a mulher emancipada defende para si mesma; reconhece ainda que isto constitui de facto um problema de difícil solução: «Que fazer, por exemplo, quando a estrutura do desejo entra em conflito com os princípios de uma pessoa? Esta é uma questão difícil para quem quer que seja consciente, mas é particularmente pungente para as feministas.» *
Embora seja relativamente fácil criticar as estruturas patriarcais opressivas, é difícil, porventura impossível, libertar-se da própria sexualidade - mesmo quando esta implica também uma dimensão opressiva, porque a sexualidade se encontra, ela própria, no âmago do que a pessoa é e constitui a manifestação de instintos poderosos e avassaladores que podemos recalcar, mas não eliminar.
A dimensão opressiva da sexualidade feminina advém da erotização da dominação - elemento fundamental da sensibilidade masoquista: implica não só aceitar como também apreciar a dominação. Mas que mecanismos terão levado a uma situação tão paradoxal? Como foi possível erotizar a dominação quando o anseio de todo e qualquer animal é ser livre? Quando se reconhece que a liberdade é elemento constitutivo essencial da pessoa humana?
Como diz Sandra Lee Bartky: «O que quer que pertença à sexualidade – não apenas o comportamento sexual, mas também o desejo sexual e a fantasia sexual – tem de ser compreendido no contexto de um sistema mais amplo de subordinação; (além de que) a sexualidade deformada de uma cultura patriarcal deve ser deslocada do domínio escondido da vida privada para a arena da luta, onde uma sexualidade de respeito mútuo «politicamente correcta» entra em conflito com uma sexualidade «incorrecta» de domínio e submissão.»*
Assim, para compreendermos esta complexa questão temos de perceber que nas sociedades patriarcais, em que as mulheres têm vivido e em que têm sido socializadas, as relações de poder entre os sexos se mantiveram sempre profundamente assimétricas: os homens têm poder – físico, económico e intelectual, as mulheres, não. Inicialmente o poder físico superior dos homens deve ter sido suficiente para estabelecer a supremacia; a partir deste, e dado o contexto e as vulnerabilidades em que a vida das mulheres decorria, foi possível aos homens monopolizarem o poder económico e o poder intelectual, mantendo-as sempre à margem do processo, através de mecanismos ideológicos de vária índole e servindo-se do mesmo poder para as dominar.
Ora o poder é sempre fascinante, até porque ele é promessa de liberdade; por isso, as mulheres - que não tinham poder nem liberdade, sentiam-se «naturalmente» atraídas por homens física, intelectual ou economicamente poderosos, numa palavra, por homens dominadores. Poder e dominação apareciam associados e protagonizados pela figura masculina; daí decorreu que a atracção que as mulheres sentiam pelo poder, que elas próprias estavam impedidas de protagonizar, suscitou a erotização da dominação que sempre o acompanhava -, apreciar homens poderosos era apreciar homens dominadores e homens dominadores queriam mulheres submissas e queriam mulheres que gostassem de ser submissas. Encontrar prazer na dominação foi uma forma de poder vicariante reservada para as mulheres.
Hoje, em muitos lugares, as circunstâncias sociais em que decorre a vida das mulheres sofreram alterações significativas; por vezes, elas têm o poder por que sempre almejaram, mas isso é esporádico e casual e nem sequer espelha a realidade prevalecente, além de que, o que é mais importante, as estruturas mais profundas da personalidade ainda não foram afectadas por essas alterações de superfície; não admira, pois, que, neste contexto, as mulheres, mesmo quando começam a afirmar-se na esfera pública, continuem a alimentar fantasias sexuais em que imperam a submissão e a dominação; aliás, é bom salientar que - já para não falar na força avassaladora das religiões, a indústria pornográfica, a moda, a publicidade e a indústria de entretenimento dão uma ajuda preciosa para que a sensibilidade masoquista permaneça, pois já perceberam que ela é a chave, ou pelo menos uma das chaves, para manter o domínio sobre as mulheres.
Como foi a relação assimétrica de poder entre homens e mulheres que condicionou a «opção» das mulheres pela sensibilidade masoquista, é de prever que a situação só comece a alterar-se significativamente quando essa relação de poder se tornar equilibrada, permitindo a construção de uma sexualidade, feminina e masculina, saudável, e não deformada, em que a reciprocidade seja regra e não excepção. Para já, a situação continua sombria pois há muitos interesses a lançarem areia na engrenagem.
De qualquer modo, cumpre dizer, e este é um sinal de alguma esperança, que, mesmo quando as mulheres reconhecem fantasias sexuais que consideram «incorrectas», trata-se, ainda assim, de meras fantasias e essas mesmas mulheres não sentiriam qualquer prazer, bem pelo contrário, se essas fantasias passassem para o campo da realidade; é que as fantasias são suas, são elas que as imaginam, que com elas agem, ao passo que sobre a eventual realidade que lhes correspondesse não teriam qualquer agência; é que imaginar que se é dominada, dada a erotização e o glamour com que a dominação é apresentada, até pode ser sexy, mas confrontar-se directa e concretamente com a dominação, salvo em casos decididamente patológicos, não só não é agradável como é profundamente traumatizante, algo que todas as mulheres repudiam veementemente, como um atentado à sua integridade física e psíquica.
*Sandra Lee Bartky: Femininity and Domination: Studies in the Phenomenology of Oppression. Routledge. p. 45
Sandra Lee Bartky, analisando a sexualidade feminina (heterossexual), considerou que neste particular caso pode existir conflito entre a estrutura do desejo feminino - um desejo que se inscreva numa relação de domínio/submissão, e os princípios éticos de autonomia e de liberdade que a mulher emancipada defende para si mesma; reconhece ainda que isto constitui de facto um problema de difícil solução: «Que fazer, por exemplo, quando a estrutura do desejo entra em conflito com os princípios de uma pessoa? Esta é uma questão difícil para quem quer que seja consciente, mas é particularmente pungente para as feministas.» *
Embora seja relativamente fácil criticar as estruturas patriarcais opressivas, é difícil, porventura impossível, libertar-se da própria sexualidade - mesmo quando esta implica também uma dimensão opressiva, porque a sexualidade se encontra, ela própria, no âmago do que a pessoa é e constitui a manifestação de instintos poderosos e avassaladores que podemos recalcar, mas não eliminar.
A dimensão opressiva da sexualidade feminina advém da erotização da dominação - elemento fundamental da sensibilidade masoquista: implica não só aceitar como também apreciar a dominação. Mas que mecanismos terão levado a uma situação tão paradoxal? Como foi possível erotizar a dominação quando o anseio de todo e qualquer animal é ser livre? Quando se reconhece que a liberdade é elemento constitutivo essencial da pessoa humana?
Como diz Sandra Lee Bartky: «O que quer que pertença à sexualidade – não apenas o comportamento sexual, mas também o desejo sexual e a fantasia sexual – tem de ser compreendido no contexto de um sistema mais amplo de subordinação; (além de que) a sexualidade deformada de uma cultura patriarcal deve ser deslocada do domínio escondido da vida privada para a arena da luta, onde uma sexualidade de respeito mútuo «politicamente correcta» entra em conflito com uma sexualidade «incorrecta» de domínio e submissão.»*
Assim, para compreendermos esta complexa questão temos de perceber que nas sociedades patriarcais, em que as mulheres têm vivido e em que têm sido socializadas, as relações de poder entre os sexos se mantiveram sempre profundamente assimétricas: os homens têm poder – físico, económico e intelectual, as mulheres, não. Inicialmente o poder físico superior dos homens deve ter sido suficiente para estabelecer a supremacia; a partir deste, e dado o contexto e as vulnerabilidades em que a vida das mulheres decorria, foi possível aos homens monopolizarem o poder económico e o poder intelectual, mantendo-as sempre à margem do processo, através de mecanismos ideológicos de vária índole e servindo-se do mesmo poder para as dominar.
Ora o poder é sempre fascinante, até porque ele é promessa de liberdade; por isso, as mulheres - que não tinham poder nem liberdade, sentiam-se «naturalmente» atraídas por homens física, intelectual ou economicamente poderosos, numa palavra, por homens dominadores. Poder e dominação apareciam associados e protagonizados pela figura masculina; daí decorreu que a atracção que as mulheres sentiam pelo poder, que elas próprias estavam impedidas de protagonizar, suscitou a erotização da dominação que sempre o acompanhava -, apreciar homens poderosos era apreciar homens dominadores e homens dominadores queriam mulheres submissas e queriam mulheres que gostassem de ser submissas. Encontrar prazer na dominação foi uma forma de poder vicariante reservada para as mulheres.
Hoje, em muitos lugares, as circunstâncias sociais em que decorre a vida das mulheres sofreram alterações significativas; por vezes, elas têm o poder por que sempre almejaram, mas isso é esporádico e casual e nem sequer espelha a realidade prevalecente, além de que, o que é mais importante, as estruturas mais profundas da personalidade ainda não foram afectadas por essas alterações de superfície; não admira, pois, que, neste contexto, as mulheres, mesmo quando começam a afirmar-se na esfera pública, continuem a alimentar fantasias sexuais em que imperam a submissão e a dominação; aliás, é bom salientar que - já para não falar na força avassaladora das religiões, a indústria pornográfica, a moda, a publicidade e a indústria de entretenimento dão uma ajuda preciosa para que a sensibilidade masoquista permaneça, pois já perceberam que ela é a chave, ou pelo menos uma das chaves, para manter o domínio sobre as mulheres.
Como foi a relação assimétrica de poder entre homens e mulheres que condicionou a «opção» das mulheres pela sensibilidade masoquista, é de prever que a situação só comece a alterar-se significativamente quando essa relação de poder se tornar equilibrada, permitindo a construção de uma sexualidade, feminina e masculina, saudável, e não deformada, em que a reciprocidade seja regra e não excepção. Para já, a situação continua sombria pois há muitos interesses a lançarem areia na engrenagem.
De qualquer modo, cumpre dizer, e este é um sinal de alguma esperança, que, mesmo quando as mulheres reconhecem fantasias sexuais que consideram «incorrectas», trata-se, ainda assim, de meras fantasias e essas mesmas mulheres não sentiriam qualquer prazer, bem pelo contrário, se essas fantasias passassem para o campo da realidade; é que as fantasias são suas, são elas que as imaginam, que com elas agem, ao passo que sobre a eventual realidade que lhes correspondesse não teriam qualquer agência; é que imaginar que se é dominada, dada a erotização e o glamour com que a dominação é apresentada, até pode ser sexy, mas confrontar-se directa e concretamente com a dominação, salvo em casos decididamente patológicos, não só não é agradável como é profundamente traumatizante, algo que todas as mulheres repudiam veementemente, como um atentado à sua integridade física e psíquica.
*Sandra Lee Bartky: Femininity and Domination: Studies in the Phenomenology of Oppression. Routledge. p. 45
Gostei da conclusão. Acredito que não devam existir fantasias sexuais "incorretas" e que essa caracterização serve apenas como meio de dominação para realização da liberdade feminina numa das suas manifestações fundamentais: o sexo.
ResponderEliminarSobre isso, sempre gosto de enfatizar a questão da ambigüidade em relação a estrutura da existencial do ser-humano.
Agora, claro, é necessário manter distância daquilo que passa a ser um comportamento patológico. Mas, infelizmente, quantas de nós se atreve a buscar uma atividade reflexiva através da auto-análise?
Parece-me que há de facto fantasias sexuais que as próprias mulheres experienciam como «incorrectas», desde que entrem em contradição com princípios estruturantes da sua personalidade, como Sandra Bartky reconhece. O que fazer nessas circunstancias é extremamente complicado, dificil e por vezes praticamente impossível; no longo curso tudo passa pela construção de sociedades verdadeiramente humanas em que o poder sobre os outros seja substituido pelo poder sobre coisas, não sobre pessoas. Utopia? É certo, mas pelo sonho é que vamos...
ResponderEliminarA reflexão de Sandra Bartky sobre sexualidade feminina e masoquismo,é muito interessante e útil no sentido em que pode rasgar horizontes, ainda,actualmente, demasiado estreitos, no que respeita ao entendimento e prática de uma sexualidade em que possa estar ausente, quer o desejo de dominar, quer o de ser dominado.
ResponderEliminarAfigura-se-me particularmente interessante a parte que refere que "a dimensão opressiva da sexualidade feminina advem da erotização da dominação, elemento fundamental da sensibilidade masoquista" e a explicação que é dada àcercaq dos mecanismos que terão conduzido a essa situação. É realmente espantoso que tenha sido possível erotizar a do0minação, quando, na verdade "o anseio de todo e qualquer animal é ser livre" Maria Helena
Ótimo texto, belas reflexões.
ResponderEliminarE quando o desejo de ser dominado passa a ser do homem?
Muito edificante seu raciocínio Adília.