Hoje, mais do que nunca, a preocupação com a beleza, considerada inseparável da juventude, continua a manietar as mulheres e a impedi-las de se realizarem acima de tudo como pessoas. Modas, cosméticas e cirurgias estéticas escravizam as mentes de muitas, sobretudo nos países onde a emancipação conheceu avanços mais significativos. E isto não acontece por acaso, acontece porque o «mito da beleza», enquanto mecanismo de controlo social, é actualmente a estratégia mais inteligente para que as mulheres continuem a ocupar o lugar que a ordem patriarcal para elas desenhou - o lugar do secundário e do inessencial.
O texto, que a seguir traduzo, explica bem como tudo isto funciona. Claro que seria desejável que o livro fosse lido na íntegra, mas para já, fica o aperitivo:
«Quando as mulheres se começaram a libertar elas próprias da mística feminina da domesticidade, o mito da beleza compensou o terreno perdido, expandindo-se à medida que essa mística se desvanecia, para levar a cabo o mesmo trabalho de controlo social.
O contra-ataque é muito violento porque a ideologia da beleza é a última remanescente da velha ideologia feminina que ainda tem poder para controlar aquelas mulheres que o feminismo da segunda vaga teria de outro modo tornado relativamente incontroláveis: tornou-se mais forte para levar a cabo o trabalho de coerção social que os mitos acerca da maternidade, domesticidade, castidade e passividade não mais conseguiam realizar. Neste momento procura desfazer, psicológica e veladamente, todas as coisas boas que o feminismo trouxe para as mulheres material e abertamente. Esta contra-força opera para pôr em cheque a herança do feminismo a todos os níveis da vida das mulheres ocidentais. …
Desde cerca de 1830, cada nova geração tem tido de combater a sua versão do mito da beleza. «É muito pouco para mim» disse a sufragista Lucy Stone em 1855, «ter o direito de votar, de possuir propriedade, etc, se não posso manter o meu corpo e os seus usos, como direito meu». Oitenta anos mais tarde, depois das mulheres terem ganho o voto, Virgínia Woolf escreveu que ainda haviam de passar décadas antes que as mulheres pudessem dizer a verdade acerca dos seus corpos. …
A «Beleza» é o sistema de moeda em curso, tal como o padrão ouro. Como em qualquer economia é determinado pela política, e nos tempos modernos no Ocidente é o último e o melhor sistema de crença que preserva o domínio masculino intacto. Ao assinalar valor às mulheres numa hierarquia vertical de acordo com um padrão físico culturalmente imposto, é uma expressão de relações de poder nas quais as mulheres têm de competir de modo não natural por recursos de que os próprios homens se apropriaram. …
O mito da beleza não é de modo nenhum acerca das mulheres. É acerca das instituições dos homens e do poder institucional.
As qualidades que um dado período considera belas nas mulheres são meros símbolos do comportamento feminino que esse período considera desejável: O mito da beleza está sempre de facto a prescrever comportamento e não aparência. A competição entre as mulheres tem sempre feito parte do mito, para que as mulheres estejam divididas umas das outras. A juventude, e até hà pouco tempo a virgindade, têm sido consideradas «belas» nas mulheres já que se enaltece a sua falta de experiência e a sua ignorância sexual. O envelhecimento nas mulheres não é «belo» porque as mulheres tornam-se mais poderosas com o tempo e porque o laço entre as diferentes gerações de mulheres deve ser sempre quebrado de novo: mulheres mais velhas temem as jovens, as jovens temem as velhas e o mito da beleza perpassa todas as épocas da vida das mulheres. Sobretudo é urgente que a identidade das mulheres tenha como premissa a «beleza» para que fiquemos vulneráveis à aprovação externa, trazendo exposto ao ar o órgão sensitivo vital da auto-estima.
Embora de certo tenha havido sempre um mito de beleza tão presente como tem sido presente o regime patriarcal, o mito de beleza na sua forma moderna é uma invenção bastante recente. O mito floresce quando os constrangimentos materiais sofridos pelas mulheres começam a abrandar perigosamente. …
O emergir do mito da beleza foi apenas uma das várias ficções sociais emergentes que se mascararam como componentes naturais da esfera feminina para melhor enclausurarem as mulheres nessa esfera. Outras ficções emergiram em simultâneo: uma versão de infância que requer supervisão maternal constante; um conceito de biologia feminina que exigia que as mulheres da classe média agissem nos papeis de histéricas e hipocondríacas; a convicção de que as mulheres respeitáveis eram sexualmente insensíveis; e uma definição do trabalho das mulheres que as ocupava com tarefas repetitivas, morosas e entediantes, tais como trabalhos de agulha e rendas. Todas estas invenções da era vitoriana serviam uma dupla função – isto é, embora elas fossem encorajadas para que as mulheres expandissem energia feminina e inteligência de modo que não fosse «prejudicial», as mulheres muitas vezes usavam-nas para exprimirem genuína criatividade e paixão.
Mas a despeito da criatividade das mulheres da classe média com modas e bordados e educação de crianças e um século mais tarde, com o papel da esposa suburbana, que decorreram destas ficções sociais, o propósito principal das ficções foi atingido: durante um século e meio de agitação feminista sem precedentes, elas efectivamente contra-atacaram os perigosos novos ócios, interesses literários e relativa libertação de constrangimentos materiais das mulheres da classe média.»[1]
[1] Naomi Wolf: The Beauty Myth: How Images of Beauty Are Used Against Women. Harper Collins e-books
Esse livro é muito bom. Ele já tem tradução no Brasil, viu?
ResponderEliminarObrigada pela sua informação. De facto eu não sabia que já havia tradução em português. Tenho o livro em Inglês, mas é sempre bom poder consultar uma tradução.
ResponderEliminarAbraço, Adília
beleza da mulher continua sendo uma arma, vestir-se bem confunde-se com ter poderosa, o poder traz prazer. E dai meu caro o buraco fica bem mais a baixo...
ResponderEliminar4
ResponderEliminar