sexta-feira, 8 de maio de 2009

Não me amolem com o relativismo cultural

Em nome do multiculturalismo e decorrente relativismo cultural, muitas pessoas no Ocidente tendem a pactuar com práticas que ocorrem noutras culturas e que são, sem sombra de dúvida, verdadeiros atentados aos direitos das mulheres enquanto direitos humanos. Estão neste caso, a poligamia, o uso do véu e da burka e, acima de tudo, a mutilação genital feminina.
Na origem desta atitude de complacência e de aceitação encontra-se a má consciência dos ocidentais em geral e de alguns intelectuais em particular que nos anos setenta teorizaram sobre o multiculturalismo e invocaram diferenças de tradições e de culturas em seu abono. Mas já o notável Condorcet - um homem à frente do seu tempo, nos finais do século XVIII, tinha denunciado o carácter opressivo de muitas tradições e a necessidade de não as aceitarmos acriticamente.
Isto dito, é tempo de reconhecermos que tradição e bondade não são termos equivalentes e que há tradições que têm de ser erradicadas se não quisermos conviver com a selvajaria e com a barbárie. De outro modo, porque não aceitar também a prática da antropofagia ou achar muito razoável que o marido bata na esposa, se assim o entender, já que a percebe como uma menor que está sob a sua tutela?

A igualdade de género

Em Espanha, a campanha eleitoral para o Parlamento Europeu destaca a luta pela igualdade de género.
E aqui? Tudo calado como de costume!? Perdendo tempo e feitio com questões bizantinas?

Carta aberta às mulheres que vivem à sombra dos homens

Simone de Beauvoir escreveu em Pour une Morale de l’Ambiguité (1947):

«Mesmo nos nossos dias, nos países do Ocidente, há muitas mulheres, de entre aquelas que não fizeram a aprendizagem da sua liberdade através do trabalho, que se abrigam à sombra dos homens; adoptam sem discussão as opiniões e os valores reconhecidos pelos seus maridos ou amantes, e isso permite-lhes desenvolver qualidades infantis interditas aos adultos porque repousam sobre um sentimento de irresponsabilidade. Se aquilo que se designa de futilidade feminina tem por vezes tanta graça e encanto, se por vezes possui mesmo um carácter comovente de autenticidade, é porque, assim como nos jogos infantis, ela manifesta um gosto gratuito pela existência, ela é a ausência do sério. O inconveniente é que, em muitos destes casos, essa despreocupação, essa alegria, essas invenções encantadoras implicam uma cumplicidade profunda com o mundo dos homens que tão graciosamente parecem contestar, e é com alguma contrariedade que nos espantamos ao ver, assim que o edifício que as abriga parece estar em perigo, as mulheres sensíveis, ingénuas, superficiais mostrarem-se mais agrestes, mais duras, mesmo mais furiosas ou mais cruéis que os seus senhores. Então descobrimos qual é a diferença que as distingue de uma verdadeira criança: à criança a situação é-lhe imposta, enquanto a mulher (entendo a mulher ocidental dos nossos dias) escolheu-a ou pelo menos deu-lhe o seu consentimento. A ignorância, o erro são factos tão inelutáveis como os muros de uma prisão (…) Mas, assim que uma libertação surge como possível, não explorar essa possibilidade é uma demissão da liberdade, demissão que implica má fé e que é uma falta positiva.»

Beauvoir está aqui a referir as mulheres cujos objectivos se centraram na esfera da vida pessoal e que escolheram ou consentiram viver à sombra dos homens; está a atingir um número muito significativo de mulheres da época, mas ainda hoje temos de reconhecer que esse universo é muito vasto. Essas mulheres tendem a partilhar acriticamente as opiniões e os valores dos homens e foi exactamente esta presunção que, mesmo quando, nos fins do século XVIII, o direito de voto foi concedido aos homens, justificou a recusa do mesmo às mulheres com o argumento de que o chefe da família já representava os seus interesses.
A mulher que vive e aceita esta situação de dependência desenvolve e muitas vezes cultiva atitudes infantis que pretensamente a tornam mais encantadora: a ingenuidade, volubilidade e uma certa futilidade são-lhe perdoadas, diria mesmo encorajadas, pois conducentes à cumplicidade com os homens, seus senhores e amantes. Por isso é que, essas mesmas mulheres, assim que o mundo masculino, em que tão bem se integram, parece correr risco, se arvoram nas suas mais extremosas defensoras. Isto pode explicar, penso, o facto de tantas mulheres encararem o feminismo com reservas, havendo muitas, sobretudo das classes privilegiadas que se lhe opõem abertamente.

Estas mulheres, que se poderiam libertar, mas não fazem qualquer tentativa nesse sentido, que se demitem da sua liberdade, são, na opinião de Beauvoir, e eu assino por baixo, pessoas de má fé e incorrem numa conduta verdadeiramente imoral pois cometem uma falta positiva.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Sexismo benevolente

O sexismo perpassa toda a nossa sociedade e assume formas diversas que vão desde o sexismo benevolente até ao sexismo hostil já próximo da misoginia. Vou hoje escrever sobre o sexismo benevolente.

O sexismo benevolente apresenta três importantes características:

(1) Manifesta-se através de uma atitude paternalista protectora: a mulher é percebida como o sexo fraco que requer a atenção e o cuidado do homem.

(2) Enfatiza diferenças que, pelo menos aparentemente e na opinião do homem, favorecem a mulher: esta é percebida como mais sensível, mais generosa e altruísta, com maior sentido ético.

(3) Encara a mulher como um ser a reverenciar e a admirar: a mulher, possuidora das características atrás referidas, merece respeito e até veneração por parte do homem.


Dadas estas características, o sexismo benevolente parece favorável à mulher e de facto, muitas mulheres aceitam-no e encorajam-no, sendo por isso muito difícil lutar contra ele e erradicá-lo. Quem não aprecia atitudes cavalheirescas? Quem não gosta de ser admirada?

No longo prazo, todavia, o sexismo benevolente tem um preço e acaba por revelar efeitos perniciosos. Um desses efeitos tem a ver com o estereótipo da mulher dotada de superioridade ética, sensível e altruísta, capaz de se sacrificar pela família e particularmente pelos filhos; ora este estereótipo acaba por ser punitivo para as mulheres que eventualmente podem nele não se reconhecer enquanto obriga as restantes a sacrifícios que porventura não são legitimáveis na medida em que prejudicam a realização da mulher como ser humano. Por outro lado, aceitar o sexismo benevolente implica defender um igualitarismo equívoco que não convém às mulheres pois acaba por as prejudicar: admitem que são diferentes apenas quando lhes convém, desaprovam a desigualdade quando lhes é desvantajosa, o que coloca em risco a própria igualdade.

Que tipo de mulheres apreciam o sexismo benevolente?

As mulheres favoráveis ao sexismo benevolente (1) têm objectivos de vida tradicionais: casar, ter filhos, manter uma família, isto é, continuam a entender que a sua esfera de influência está circunscrita ao privado e ao doméstico. (2) As suas perspectivas são conservadoras, e apresentam um perfil cognitivo que as leva a entender as diferenças entre homens e mulheres como naturais e biologicamente determinadas. (3) Percebem a realidade como estável e independente do indivíduo e do seu comportamento, o que explica o seu pouco interesse na mudança social.
Realmente, se uma mulher quer limitar a sua vida à esfera privada da família, em princípio tem de contar com o homem para prover às suas necessidades, tem de aceitar a figura masculina como paternalista e protectora; por outro lado, se considerar que as diferenças que a separam do homem são sobretudo biológicas tenderá a aceitá-las com alguma passividade pois sentirá que nada ou pouco pode fazer para as eliminar, daqui decorrerá a sua receptividade ao sexismo benevolente.

Mas o sexismo, benevolente ou não, é sempre sexismo e pode uma mulher consciente e lúcida conviver pacificamente com ele?

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Sexismo e perfis masculinos

Utilizando dados incluídos em Wanting it Both Ways: Do Women Approve of Benevolent Sexism? De Stephen Kilianski e Laurie Rudman, vou elencar características de três tipos de perfis psicológicos, convidando o leitor a decidir qual o que lhe corresponde:

Perfil do sexista hostil

Acredita que as mulheres:

· Dizem lutar pela igualdade, mas o que querem é obter vantagem sobre os homens;
· Fazem exigências pouco razoáveis aos homens que estão sempre «presos por ter cão e presos por não ter»;
· São excessivamente susceptíveis e não têm sentido de humor;
· Gostam de provocar os homens … e depois fingem-se ofendidas;
· São manipuladoras.

Perfil do sexista benevolente

Considera que:

· A vida de um homem, por mais bem sucedido que este seja, está sempre incompleta sem o amor de uma mulher;
· Na relação conjugal, a mulher é objecto de adoração;
· As mulheres têm um sentido ético e estético superior;
· As mulheres devem ter um tratamento de deferência, nomeadamente em situações de catástrofes e emergências;
· O homem deve prover às necessidades da mulher (esposa/companheira).

Perfil do não sexista

Considera que:

· As mulheres apenas querem igualdade e não serem discriminadas;
· Nenhum dos sexos é superior ao outro no que toca a sensibilidade moral ou estética;
· O amor de uma mulher pode ser importante, mas não é indispensável à vida de um homem;
· Em geral as mulheres não querem controlar ou reprimir os homens com os quais partilham a relação;
· As mulheres não procuram excitar os homens para em seguida «gozarem» com a sua (deles) frustração.

Escolha o chapéu que lhe serve

Pérolas de misoginia

Dou hoje a palavra a Hegel que fornece mais um argumento às autoras feministas que subscrevem a tese de que o canon filosófico é misógino:

«As mulheres são susceptíveis de ser educadas, mas não são feitas para actividades que exigem uma faculdade universal como as ciências mais avançadas, a filosofia e certas formas de criação artística … As mulheres regulam as suas acções não por exigências de universalidade, mas por opiniões e inclinações arbitrárias.»[1]

Repare-se no tom condescendente: as mulheres não são destituídas de todo, até podem ser educadas, mas há domínios - os domínios mais nobres da cultura humana, que lhes estão completamente vedados. Estruturalmente não são capazes de agir segundo princípios racionais (aqui Hegel concorda em absoluto com Kant) e os motivos das suas acções são arbitrários, isto é, são movidas por caprichos.

Será preciso dizer mais??

[1] Hegel: The Philosophy of Right

terça-feira, 5 de maio de 2009

Poesia no feminino

Carol Ann Duffy (1955-) escocesa, eleita poetiza laureada no último dia 1 de Maio, aceitou a honraria a fim de que as mulheres estivessem finalmente representadas numa Academia dominada exclusivamente por homens nos últimos quatro séculos.
O prémio, no valor de 5750 libras, será doado à Poetry Society para a fundação de um novo prémio literário.
De entre a sua vasta obra, destacamos a colecção de poemas «World’s Wife» na qual dá voz às esposas, namoradas e irmãs de várias personagens masculinas famosas, quer no plano histórico quer no mítico.

Porque é que este anúncio é sexista?

Sabemos que o sexismo está implícito em muitos anúncios publicitários, como aqui podemos observar.
Porque é que este anúncio é sexista?

Fica o desafio esperando a V. resposta nos comentários.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Duplo padrão e «mulheres más»

O princípio do duplo padrão de conduta criminaliza na mulher aquilo que admite no homem, ou seja a infidelidade conjugal. Este princípio ou costume, como queiramos chamar-lhe, é tão velho quanto a sociedade patriarcal e até mesmo os filósofos do século XVIII, no período das Luzes, procuraram encontrar para ele uma justificação racional. O próprio David Hume reconheceu que a virtude da castidade e o correspondente comportamento de fidelidade exigível nas mulheres era desculpável nos homens. Só que Hume e todos os que o antecederam e lhe sucederam não tiraram todas as consequências da admissão do princípio, a mais óbvia das quais é que para ser posto em prática requer a existência de uma reserva considerável de «mulheres más», pois para «dançar a valsa» continuam a ser precisos dois e os homens só podem ser infiéis com outras mulheres, a menos que adoptem a prática grega da homossexualidade, mas esta está longe de satisfazer todos.
Deste modo se percebe porque é que a prostituição, repudiada em teoria e nos termos de uma moral hipócrita, acabou por ser vista como um mal necessário. Mas não deixa de ser curioso que a culpa desse mal seja toda atribuída à mulher, não há vislumbre da mínima recriminação a respeito do homem que dela se serve. A este título o pronunciamento dos doutores da Igreja é espantoso, vejamos o que dizem Agostinho e Tomás de Aquino, respectivamente:

«O que é que pode ser mais sórdido, mais desprovido de modéstia, mais vergonhoso do que prostitutas, bordeis e todos os outros males deste tipo?! Todavia, remove a prostituição dos assuntos humanos e poluirás todas as coisas com luxúria, estabelece-a entre as matronas honestas e desonrarás todas as coisas com desgraça e torpeza.»
«A prostituição no mundo é como a imundície no mar ou o esgoto num palácio. Retira o esgoto e encherás o palácio com poluição; o mesmo acontecerá com a imundície do mar. Afasta as prostitutas do mundo e irás enchê-lo de sodomia…»

Os dois convergem em considerar a prostituição como indispensável para evitar um mal maior. Falam em poluição, mas omitem «sensatamente» o autêntico poluidor. Esquecem ainda que do lote das prostitutas fazem normalmente parte as mulheres mais pobres e desfavorecidas da sociedade que esta empurra, através de vicissitudes de vária ordem, para essa degradante situação. Num caso e no outro a prostituição é vista como um mal necessário, o que não deixa de ser curioso, mas a culpa desse mal parece ser toda atribuída à mulher, não há vislumbre da mínima recriminação a respeito do homem que dela se serve. Mesmo aqueles governantes que tentaram proibir a prostituição só previram sanções para as prostitutas que iam desde chibatadas e expulsão até à condenação à morte.

Tão difícil é mudar as mentalidades que, ainda hoje, se consultarmos um simples dicionário, vemos que a prostituição é definida como o trabalho que a prostituta exerce com total ausência de referência àquele que usufrui desse trabalho o que mostra bem a unilateralidade e o enviezamento com que o tema é abordado; somente em países mais evoluídos da Europa, como por exemplo a Suécia, é que o homem é penalizado por um comportamento que aí se considera negativamente, o que de qualquer modo já constitui uma esperança de que qualquer coisa começa a mudar.

domingo, 3 de maio de 2009

Diferentes tipos de feminismo

Quando falamos em feminismo, temos de levar em linha de conta a existência de diferentes tipos: O feminismo liberal; o feminismo materialista e o feminismo radical.




O feminismo liberal foi o feminismo da primeira vaga e teve como representantes mais conhecidas Mary Wollstonecraft (1759-1797) autora de Vindications of Rights of Woman e Virgínia Woolf (1882-1941) autora de A Room of One’s Own (1929). Neste período, aceita-se o determinismo biológico que distinguiria homens de mulheres, mas reivindica-se igualdade de direitos, nomeadamente o direito de voto e de representação política, julgando-se que serão suficientes reformas políticas para resolver os problemas que afectam as mulheres. Todavia, convém dizer-se que Virgínia Woolf já teve a percepção de que o problema estava também ligado à ausência de poder económico das mulheres, que condicionava a sua situação de dependência e submissão.


O feminismo materialista, ligado aos nomes de Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), diverge do feminismo liberal porque considera que o género é acima de tudo uma construção social e não um determinismo biológico e como tal não é uma categoria que corresponda a uma realidade imutável. As ideias dos dois pensadores sobre a matéria encontram-se dispersas, mas foi Engels que na «Origem da Família, da Propriedade e do Estado» lhes deu uma forma mais sistemática. Mas para Engels a opressão básica é a de classe e não a das mulheres, partindo do princípio de que se se criarem condições para pôr termo à opressão de classe também se verificará a emancipação da mulher. Engels denuncia a fraude que é a família monogâmica pois esta só é monogâmica para as mulheres às quais se exige fidelidade absoluta como garantia de que a herança do património familiar segue de pai para filhos. Simone de Beauvoir (1908-1986) escrevendo em 1949 o Segundo Sexo assume uma postura não essencialista próxima do feminismo materialista.


O feminismo radical dos anos sessenta é também essencialista quanto às diferenças entre homens e mulheres, mas, diferentemente do feminismo liberal, considera insuficientes as reformas políticas que visem uma maior participação das mulheres e preconiza que só a abolição das estruturas opressivas da sociedade patriarcal pode levar à verdadeira emancipação e ao estabelecimento da igualdade relativamente aos homens.

sábado, 2 de maio de 2009

Porque é que eu nunca ouvi falar em Lilith?

Uma antiga lenda hebraica conta que a primeira esposa de Adão não teria sido Eva mas uma outra personagem, de nome Lilith. Adão e Lilith, ambos criados por Deus a partir da terra, não se entenderiam muito bem, pois a mulher reivindicava constantemente igualdade de tratamento ao seu intransigente marido.
Tão frequentes se tornaram as brigas que Lilith decidiu fugir abandonando Adão. Face a esse incidente, Deus enviou três anjos para a persuadirem a regressar com a ameaça de que se não obedecesse morreriam cem crianças em cada dia. Mas Lilith não se deixou convencer e acabou transformada no símbolo da mulher malvada que provocava esterilidade e outras misérias quejandas.
Pôr termo à servidão a que Adão a queria condenar parece ter sido o único crime de Lilith, mas tal bastou para que uma legião de rabis a tivesse diabolizado e transformado num autêntico monstro.

Quando procurava informação sobre Lilith encontrei o site «The Restored Church of God» com esta espantosa afirmação: «Não há autoridade ou validade na ideia de que Adão teve uma esposa anterior à criação de Eva. Lilith é uma lenda rabínica com raízes na demonologia medieval. A Bíblia é a fonte de autoridade e declara firmemente que Eva foi a “primeira mulher” de Adão.»

É caso para perguntar: Lilith é uma personagem lendária, e Eva e Adão o que são?

De qualquer modo, agora já percebi porque nunca ouvi falar em Lilith.

Este vídeo adensa ainda mais o mistério sobre Lilith, personagem multifacetada e inquietante:


sexta-feira, 1 de maio de 2009

A mulher e a categoria do «outro»

Ruth Benedict, antropóloga social, autora de Patterns of Culture (1934), explicou com clareza como a categoria do «outro» surge enquanto pólo - perverso é certo, aparentemente necessário à afirmação de qualquer grupo social:

“O homem primitivo nunca considerou o mundo nem viu a Humanidade como se fosse um grupo, nem fez causa comum com a sua espécie. Desde o início foi o habitante de uma província que se isolou por meio de altas barreiras. Quer se tratasse de escolher mulher ou de cortar uma cabeça, a primeira distinção que fazia, e a mais importante, era entre o seu próprio grupo humano e os de fora do grémio. O seu grupo e todos os seus modos de comportamento eram únicos.”

Assim, o primeiro impulso de qualquer grupo social é o de destruir, exterminar o outro. E o outro é o que é diferente, considerado obviamente inferior; pode transformar-se com facilidade em bode expiatório ao qual se vai atribuir tudo o que de mal acontece. O outro ajuda à construção da identidade do grupo e é factor de coesão social.
Ora na relação estabelecida desde o início entre o homem e a mulher, verifica-se que esta funcionou também como o outro dentro do próprio grupo social. À custa desse outro, que era a mulher, o homem pôde construir e consolidar a sua própria identidade. Mas neste específico caso, o impulso de extermínio não poderia ser inteira e cabalmente satisfeito pois, se o fosse, conduziria à extinção da espécie, daí que os homens se tenham limitado, em termos gerais, a diminuir a mulher enquanto pessoa, impedindo a sua realização; ou, numa tentativa de suavizar o golpe, limitando essa realização a uma função biológica - a maternidade, que em dado momento procuraram mesmo idealizar e até sacralizar.
Todavia, não satisfeitos com essa limitação, houve sempre um grupo de mulheres que, simbolizando o mal absoluto, foram perseguidas e aceites apenas marginalmente ou mesmo exterminadas, estamos a falar das prostitutas, por um lado, e das bruxas da Idade Média, por outro, às quais foi aplicada com todo o zelo e eficiência uma espécie de «solução final».
É certo que todo este processo esteve longe de ser consciente, programado ou planejado, mas nem por isso deixou de ser menos deletério.
Compreender por que é que as mulheres aceitaram este papel que a sociedade dominada pelos homens lhes prescreveu não é tarefa fácil. Mas provavelmente não tiveram outro recurso: menos fortes do que os homens em termos físicos; sobrecarregadas com uma função reprodutiva sobre a qual não detinham qualquer controlo; condicionadas por um processo de aculturação que tudo fazia para as remeter para o seu «lugar natural» a que as religiões patriarcais conferiam um estatuto imutável e desejável; diminuídas moralmente com a interiorização do sentimento de culpa pelos males de que humanidade sofria, constituíam o objecto privilegiado sobre o qual se podia abater a vontade de poder do mais forte e acabaram por fornecer o modelo de todas as outras formas de opressão.
Hoje, com alterações profundas no modo de viver da humanidade, começa a ser possível desmontar estas questões e implementar um processo de libertação que, mesmo no mundo ocidental, se encontra muito longe de concluído.