sábado, 3 de outubro de 2009

Legalizar a prostituição?!

Há muito boa gente, algumas feministas incluídas e também prostitutas, que advogam a legalização da prostituição com base nas consequências nefastas que a sua ilegalização acarreta em termos de exploração e de saúde pública e que defendem que a prostituta se limita a prestar um serviço contratualizado a um cliente - vender sexo seria como vender outra coisa qualquer, seria um serviço como qualquer outro, devendo-se apenas evitar a exploração, a coerção ou a fraude. Em tais termos, pressupondo consentimento entre as partes, nada haveria a opor e a condenação da prostituição por esquerdas e direitas seria apenas atribuível a resquícios de um moralismo passadista que tende a encarar o sexo como algo que detém uma enorme carga de negatividade. Estas pessoas consideram que a prostituição é condenada pela moralidade positiva - expressa na opinião pública, nos costumes e nas leis – mas este tipo de moralidade costuma abrigar sempre um certo números de preconceitos, isto é, de ideias feitas que se aceitam como válidas, que não foram escrutinadas pela razão; consideram ainda que a moralidade crítica pode por em causa a moralidade positiva e será capaz de denunciar as suas falácias e preconceitos.

De facto, concedo que a moralidade tradicional, pelo menos a de raiz religiosa, encara o sexo como algo mau, ou até mesmo pecaminoso, que só tem legitimidade enquanto meio para a procriação, ou quando muito, para reforçar a união do casal e dar-lhe estabilidade para criar os filhos. Para ela, é o casamento que é estimável enquanto instituição social, não são os indivíduos, não é o casal que é importante. Mas penso que numa perspectiva que aceite o sexo e o legitime enquanto fonte de prazer, esta condenação da prostituição deixa de ser consistente.

Por outro lado, condenar a prostituição com o argumento de que é nociva para quem a pratica: doenças venéreas, humilhação, violência por parte dos clientes, exploração por donas de casa de prostitutas e por gigolôs, é um argumento paternalista que, enquanto tal, não resiste ao escrutínio crítico e por outro é até contraproducente porque pode sempre mostrar-se que estes males advém do facto da prostituição se encontrar condenada e ilegalizada e de se estigmatizar a figura da prostituta. A falácia de tal argumento é que mesmo que seja verdade o que nele se diz, isso não é suficiente para condenar moral ou legalmente a prostituição, é quando muito um argumento prudencial: não é aconselhável ser prostituta, mas a partir daí nada mais se pode adiantar.

Afastados estes dois argumentos pela sua inconsistência, fica por considerar aquele que me parece realmente sólido e que afirma que a prostituição não se pode legalizar porque atenta contra os direitos inalienáveis da pessoa humana: a prostituta aceita ser tratada como um simples meio para o cliente atingir o fim que se propõe - satisfação sexual; aceita ser reduzida à condição de objecto sexual. E não só é reduzida ao estatuto de objecto o que já por si é degradante como tem ainda de se mostrar cooperativa na sua própria degradação: tem de «funcionar» de determinada maneira, tem de se empenhar num papel determinado para prover à satisfação sexual do cliente, tem de se mostrar submissa e subserviente em relação aos desejos do cliente. O facto de ela concordar com o «negócio» em certo sentido ainda piora a situação porque como o «negócio» se realiza no contexto da sociedade patriarcal, com a sua anuência, ela acaba por reforçar e aceitar a inferiorização e o domínio e controlo sexual do homem sobre a mulher que ela representa. O que a prostituta vende não é, como se pretende - não se sabe se com ingenuidade se com má fé, um simples serviço, de facto, ela vende-se a ela própria por um determinado lapso de tempo, anula-se como pessoa. Enquanto, por exemplo, o trabalhador de uma fábrica vende a sua força de trabalho, mas isso não o impede de continuar a existir como pessoa, tal não acontece com a prostituta que não se consegue alienar do que está a vender. Parece-me que esta peregrina ideia do serviço que o corpo da prostituta realizaria decorre de uma concepção dualista do ser humano que defende que este é um composto de duas realidades independentes, o corpo (que se tem, à maneira de uma coisa) e o espírito (que se é, que constitui a essência da pessoa), a ser assim, pode advogar-se que a prostituta vende o corpo, mas preserva o espírito; todavia esta concepção é como sabemos apenas mais uma concepção religiosa e hoje de uma maneira ou de outra tod@s estamos cientes de que nós somos corpo, um corpo que sente, deseja, pensa e que não podemos pensar, sentir, desejar sem corpo, portanto quando se vende o «corpo» vende-se aquilo que se é.

Parece-me que esta linha de argumentação pode fornecer um apoio sólido a quem, apesar de reconhecer e lamentar a exploração a que as prostitutas estão sujeitas, não concorda com a legalização de tão sórdido negócio, porque de facto a degradação da prostituta também é, embora remota e indirectamente, a degradação de todas as mulheres e ainda mais indirectamente de todo e qualquer ser humano. Não se pode de modo nenhum resolver o problema da legalização da prostituição ouvindo apenas as prostitutas, tem de se ouvir acima de tudo as mulheres e também os homens, apesar da perspectiva destes na maioria dos casos estar enviesada, porque o que as prostitutas fazem, embora em minha opinião seja nocivo para elas – mas essa é apenas a minha opinião, é nocivo para as mulheres em geral, para mim em particular e para a dignidade do ser humano.
Assim, a legalização da prostituição é um assunto em que temos de ser ouvid@s, a decisão não nos pode passar à margem. E isto, para as mulheres, nada tem a ver com paternalismo, ou maternalismo, tem a ver com consciência de classe, uma coisa que tem andado muito arredada dos nossos pensamentos.
P.S. Sei que muito boa gente não concorda com a tese aqui defendida, convido quem quiser colaborar a apresentar brevemente e a defender o seu ponto de vista.

15 comentários:

  1. Ótimos textos que discutem a questão da prostituição:

    Prostituição- a falacia patriarcal do direito de escolha
    "Meu corpo, portanto, está do lado do sujeito que sou, mas ao mesmo tempo, enreda-me no mundo das coisas. Meu corpo abre-me para o mundo, ou ainda melhor, abre-me em direção ao mundo, e constitui meu ponto de vista dele.(...)Ao desintegrar-se meu corpo, também meu mundo cai em pedaço,e o inteiro desfazer-se de meu corpo significa um rompimento com o mundo e igualmente a morte, o fim de meu ser como ser-consciente-no-mundo."
    http://www.esnips.com/doc/f9b5c7ac-56ad-4310-92d9-88f8367170ac/Prostituição--a-falacia-patriarcal-do-direito-de-escolha

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  2. Banalizar e naturalizar a prostituição
    A prostituição vem sendo apresentada pelo história como algo já existente desde os primórdios da organização social humana. Diferentes facetas do discurso social retomam esta idéia e justificam a prostituição, esvaziando-a de sua violência constitutiva. A prostituição transformada em profissão de fato legaliza a violência da apropriação material e simbólica dos corpos das mulheres.
    http://www.esnips.com/doc/a4b80dc6-cfe4-45d8-a0b3-fb12240f3e83/Banalizar-e-naturalizar-a-prostituição

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  3. TRAFICO DE MULHERES E PROSTITUICAO
    Este texto tem por objetivo contestar o argumento principal das propostas de legalização da prostituição. A proposta de legalização argumenta que a prostituição é uma profissão como outra qualquer, ou melhor, uma simples troca de serviços sexuais por remuneração livremente estabelecida na compra e venda de serviços sexuais.
    http://www.esnips.com/doc/5fff142d-473d-4b7e-8e46-801bdd97d87f/TRAFICO-DE-MULHERES-E-PROSTITUICAO

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  4. Trafico e Escravidao Sexual-Perguntas Frequentes
    O tráfico atinge pessoas de todas as origens, e pessoas são traficadas para uma variedade de propósitos. Os homens geralmente são traficados para trabalhos forçados, enquanto crianças são traficadas para as indústrias de trabalhos têxteis, agricultura e pesca. As mulheres e meninas são tipicamente traficadas para o comércio de sexo - exemplo, prostituição e outras formas de exploração sexual.
    http://www.esnips.com/doc/7485fb31-bc50-4f7a-b847-75e2045fa06f/Trafico-e-Escravidao-Sexual-Perguntas-Frequentes

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  5. Anonim@
    já tive oportunidade de consultar os endereços que teve a gentileza de me indicar. Sobretudo o texto sobre a banalização e naturalização da prostituição pareceu-me excelente. Obrigada.

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  6. Outro texto:

    Não à Legalização da Prostituição_10 Razões para a prostituição não ser legalizada

    http://www.esnips.com/doc/766d1b13-afb7-4187-9a9d-e6160a1b6502/Não-à-Legalização-da-Prostituição_10-Razões-para-a-prostituição-não-ser-legalizada

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  7. }:O a principio eu cheguei a defender a legalização da prostituição, mas exatamente por ver que seria uma forma de diminuir a degradação da mulher e um caminho para a ressacralização do corpo, do prazer. sem falar que seria um desbunde diante da Igreja.
    qual a minha penitência?

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  8. Beto
    Percebo muito bem todas as suas razões e tenho de confessar que eu própria já tive bastantes dúvidas quanto a este assunto. Numa perspectiva pragmática pura tudo apontaria para a legalização, mas então também seria caso para perguntar por que nãolegalizar a escravatura por exemplo, desde que fosse um contrato livremente assumido? O que me parece é que há coisas que não podem ser contratualizadas e neste momento penso que uma delas é a venda de pretensos serviços sexuais que no fundo acaba por ser a venda de pessoas mesmo que seja só por determinado lapso de tempo. É tudo muito complicado, e o ideal seria ir às raizes dos problemas, mas elas, neste caso, estão tão fundo que se torna quase uma missão impossível extirpá-las.

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  9. É...assunto duro esse. Confesso q ainda não tenho uma opinião formada sobre o assunto, embora "tenda" a ser a favor da prostituição. A legalização, para "dar certo" ,teria q ser mto bem orquestrada (isto é, c/ mtos "poréns"), de modo a evitar a exploração, o tráfico de mulheres e crianças, e abusos cometidos por clientes tresloucados (a maioria não o é). Não basta legalizar, pagar 13º, oferecer direito a férias e posar de "liberal". Isso é o mesmo q tratar a prostituta como lixo. É preciso avaliar e fiscalizar minunciosamente as condições de "trabalho" a q estas mulheres são submetidas. Vale lembrar q não é em todo bordel que prostitutas são maltratadas (nem tudo é "boca do lixo"), e nem todas as prostitutas enxergam sua "profissão" como um carma. Isso é mto mais frequente entre as mulheres pobres (q não têm condições de escolher coisa alguma). A Gabriela Leite, dona da Daspu, já disse q acha ridícula qualquer tentativa de "salvar" as prostitutas da vida que levam. Ao mesmo tempo, políticas públicas são necessárias p/ q akelas q desejam abandonar a "profissão" (talvez uns 80% delas) possam fazê-lo. E não acho q a pornografia e a prostituição denigram a imagem da mulher. Não são apenas os homens q consomem pornografia. Gays, lésbicas e feministas tb. Existe pornografia p/ tds os gostos. Transar de graça na micareta pode, mas por dinheiro não? Engravidar de jogador de futebol rico "acidentalmente" é esperteza, mas posar p/ a Playboy é coisa de mulher baixa? Se as feministas são a favor do aborto alegando q "têm direito sobre os próprios corpos", pq o mesmo não se aplica à prostituição e à pornografia? O q diminui e humilha a mulher não é exatamente o sexo ou a prostituição, mas a submissão.

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  10. Lembrando tb que: é claro q a prostituição pressupõe um certo grau de submissão, mas se a prostituta está nesta vida porque quer (ao contrário daquelas q o fazem p/ sobreviver), ela não precisa realizar td e qualquer desejo do cliente, isto é, td prostituta teria o seu "repertório".

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  11. Pornografia, prostituição, revistas masculinas tudo isso faz parte do grande comércio do corpo feminino e da sexualidade feminina. Não há liberdade de escolha se as mulhres desde sempre são consideradas e tratadas como carne de consumo para satisfação e dominação dos homens e todas essas práticas só são ensejadas porque a submissão ao estereótipo de "puta" vem como marca registrada a partir do momento em que a mulher nasce...

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  12. Quem é este anónimo repulsivo que há dez comentários não faz outra coisa que não seja conspurcar este espaço? Chiça, haja paciência.

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  13. David, desculpe-me mas tenho de lhe dizer que sou a favor da liberdade de expressão de pensamento e em coerencia não aprovo que se insulte qualquer comentador por mais que se discorde das opiniões despendidas. Ainda mais num caso tão controverso como é este da prostituição em que é muito dificil criticar a «opção» que algumas farão, embora me pareça que mais do que opção o que está em causa é a ausência de alternativas credíveis. Claro que a imensa maioria das prostitutas é sim vítima de um sistema social hipócrita e profundamente injusto, mas eu até percebo que algumas por uma questão de pudor que, sim senhor, também têm, não consigam reconhecer-se como vítimas e empreendam uma espécie de fuga para a frente.

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  14. "não tenho opinião formado sobre o asunto" e "é ridículo a idéia de salvar as prostitutas" è a prova mais nítida de como a cultura patriarcal distorce a violência da prostituição e a glamouriza,a ponto de muita gente ainda acreditar que "não tem nada de errado nisso".Só me pergunto porque os homens não clamam que se prostitutir para nós é um direito deles,já que a prostituição é algo tão fascinante então fortemente defendido,como numa postagem ali em cima.Pra eles não existe esta "opção" não é mesmo? Somente para nós,o que demostra nossa condição de lixo na cultura patriarcal.Vale lembrar que enquanto a Playboy ganha forças ao redor do mundo,a Playgirl deixou de ser impressa.Queria saber o que pessoas com pensamento "feminista liberal" deste anônimo aí acima tem a dizer sobre isso.
    Outra coisa: em países de lingua inglesa já existem grupos e coligações contra tal "liberdade da mulher",inclusive grupos de suporte para as mulheres sairem da prostituição;só observo esta "resistência" nos países de lingua portuguesa.Curioso,não?

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  15. E Beto,leia mais sobre o assunto antes de achar que está nos defendendo legalizando a prática de tal violência contra nós.Mas não o relato de cafetinas que só querem lucrar e mascarar adesgraça de muitas mulheres como esta dona da Daspu,mas relátos sérios do CATWA e ANDREIA DORKIN.E legalizar o comércio de nossos corpos não tem anda a ver com ser a favor do nosso prazer sexual ou fazer frente á Igreja,pois a prostituição existe em todas as culturas patriarcais,não só nas cristães.Que poder temos quando somos reduzidas á mercadorias? É impressionate como as pessoas associam a prostituição á tudo,menos ao que ela realmente é: a redução dos corpos das mulheres á mercadorias é disposição de estupros etc.Quem a efende ou é cafetina que nunca sentiu na pele e pessopas que querem se passar por "humanistas".
    Seria melhor que vc viesse com argumentos que realmente nos encorajasse nossa luta ao invés desta postura de vazia de "bom moço" que se acha entendido nos assuntos femininos.

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