terça-feira, 30 de novembro de 2010

Natureza da violência masculina

Ainda hoje, quando um marido, namorado ou companheiro maltrata ou mata uma mulher, continua a fazer-se passar a mensagem, mesmo que sub-repticiamente, que o fez por amor e não por poder; um amor excessivo, traduzido em ciúmes mórbidos, ou um amor que não aguentou a rejeição; deste modo, com tal percepção, aceita-se a violência masculina e, obviamente, criam-se condições para a perpetuar.

Mas, a violência masculina não é um fenómeno individual, atribuível a idiossincrasias destas ou daquelas pessoas, embora obviamente possa ter uma componente desse tipo, e, por isso, não deve ser encarada dessa maneira; ela é a consequência natural do sistema de dominação em que vivemos, no qual continua a imperar a supremacia masculina; é um fenómeno político, resultante do modo como a vida de homens e de mulheres se encontra organizada; se não se entender isto, não se vai resolver o problema, pode-se agir circunstancialmente, mas o remédio será ineficaz.

Mesmo nas nossas modernas sociedades é difícil encontrar mulheres que em uma ou outra circunstância da sua vida não tenham sofrido ou temido a violência masculina e é esta dimensão que importa não escamotear; todavia, apesar desta constatação, muitas mulheres jovens preferem pensar que a igualdade já foi alcançada e que os casos de violência masculina são esporádicos e pontuais; pensar assim é muito reconfortante, mas ilude a questão porque a violência existe de facto e a ameaça que representa, quanto mais não seja, limita os movimentos das mulheres e por isso é um real impedimento à igualdade. É muito doloroso ter esta consciência e por isso é tão fácil rejeitá-la. Um caso obvio de dissonância cognitiva.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Beleza e política

A obsessão com a perfeição e com a juventude das mulheres é tal que leva os homens e até as próprias mulheres a olharem as candidatas a cargos públicos nesses termos e a desqualificarem-nas porque não satisfazem os parâmetros exigidos: não são jovens e frequentemente não bonitas. E o que é mais espantoso é que esta atitude não se encontra apenas nas pessoas comuns mas, o que é muito mais grave, encontra-se disseminada mesmo entre os jornalistas e outros profissionais de televisão.
Quando olhamos para um grupo de políticos reunidos num qualquer parlamento vemos homens de meia-idade ou até de terceira idade, pançudos, carecas e normalmente pouco atraentes fisicamente, mas ninguém parece reparar e não se estranha porque de facto eles não foram eleitos pelos seus atractivos físicos, mas pela sua pressuposta inteligência e competência. Todavia, parece que se julga, diversamente, a inteligências das mulheres pela sua figura, fisionomia e juventude; mais uma vez nos encontramos perante um duplo padrão de conduta que lesa gravemente os interesses das mulheres, sujeitas a uma crítica implacável e a uma sátira corrosiva independentemente das competências que revelem. A mulher que se candidata a um cargo político não está a pretender fazer carreira como estrela cinematográfica; por isso, se é gorda ou magra, jovem ou menos jovem, esses atributos são, no caso, irrelevantes. Mencionar os atributos físicos de uma candidata é assim mais uma prova de que continuamos a viver em sociedades sexistas que discriminam pessoas com base no sexo.
Que tal começar a aplicar as mesmas exigências a candidatos masculinos e esperar para ver?!

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

A inveja do pénis e o destino das mulheres


Freud, malgrado toda a genialidade que temos de lhe reconhecer, era um homem do seu tempo, nascido e educado na era vitoriana, e um oponente determinado da emancipação das mulheres.
Uma das suas teorias,amplamente divulgada, foi a teoria da inveja do pénis, segundo a qual as meninas, ao constatarem a inferioridade do seu aparelho sexual, passavam a alimentar o sentimento de inveja do órgão sexual masculino. Essa inveja só seria ultrapassada através de um mecanismo compensatório que implicava necessariamente o casamento e a maternidade, com o nascimento de um filho.
Esta teoria explicava assim por que o casamento era tão necessário para as mulheres e o que era ainda mais importante, permitia atribuir o estatuto de anormalidade àquelas que se atrevessem a desdenhá-lo e perseguissem um estilo de vida que lhes garantisse independência e autonomia. A inveja do pénis servia para apresentar as reivindicações das mulheres como um comportamento profundamente desajustado, como uma resposta ressentida ao seu status, naturalmente inferior ao dos homens:

“Aceitar a inveja do pénis como inevitável já era suficientemente mau para uma mulher. Não a aceitar era pior. Se tentasse compensar a falta desse órgão, imitando a vida ou as ambições de um homem, então ela ficaria refém de uma «masculinidade complexa», condenada a uma vida de imaturidade sexual e de frustração.»

Não se queria entender, melhor, não convinha entender, que não era o pénis que as mulheres invejavam, mas sim os privilégios que este simbolicamente representava; desse modo, a teoria freudiana correspondeu, no domínio sexual, á reacção conservadora que mais generalizadamente atingia a sociedade .

Claro que a teoria da inveja do pénis era uma fantasia interessante, mas uma fantasia, e, aplicando a metodologia psicanalítica ao próprio autor, pode-se suspeitar que serviu para aplacar angústias e temores do próprio Freud. Sabemos que muitas das pacientes por ele tratadas relatavam casos de abuso sexual na infância por progenitores masculinos, sabemos de uma história de contornos algo escabrosos para a época que envolvia o próprio pai de Freud, conhecemos a sua moralidade rígida, vestígio de educação vitoriana, e podemos também imaginar o desconforto que esses relatos e essa história haviam de produzir nele e como havia de parecer tão lógico atribuir às próprias pacientes fantasias de abusos resultantes de um inconsciente em que procuravam seduzir a figura paterna, por inveja do pénis, atribuindo de seguida aos pais, homens respeitáveis e de reputação impoluta, como Freud devia considerar, aquilo que tinham desejado inconscientemente, mas que rejeitavam ao nível da consciência. Num caso por ele analisado de uma paciente, o caso de Dora, Freud interpretou as queixas da paciente contra o pai como manifestação de um desejo incestuoso reprimido. O facto do pai de Dora a ter «cedido» sexualmente, quando ela tinha dezasseis anos, a um comerciante de meia-idade para conservar uma ligação ilícita que ele próprio mantinha com a mulher deste, é desvalorizado por Freud.

Assim se compreende mais uma vez que a razão é escrava das paixões e que o pensamento voluntarista nos faz perceber a realidade não como ela é mas como nós gostaríamos que fosse.

domingo, 21 de novembro de 2010

Ideologia e mistificação



A ideologia, enquanto representação imaginária de uma existência real, exerce frequentemente uma função mistificadora e serve interesses que se encontram camuflados. Este aspecto é facilmente demonstrável através do escrutínio da ideologia de «sacralização da maternidade». As mulheres normalmente são mães, mas apresentar a maternidade como uma função sagrada, conquanto pareça ser uma representação que favorece as mulheres, a uma análise mais atenta revela os interesses que serve. Esta ideologia foi posta a circular através dos filósofos, dos cientistas, dos romancistas e dos meios de comunicação do século XVIII, (revolução americana revolução francesa e revolução industrial) numa altura em que a mulher começou a reivindicar acesso à esfera pública, aí então convencê-la de que o seu verdadeiro papel, o mais sagrado, era o de mãe tornou-se muito conveniente para a circunscrever à esfera privada ou pelo menos para limitar o mais possível a sua incursão na esfera pública. Desde então esta ideologia, no essencial, tem-se mantido e reforçado, para limitar o poder das mulheres. Ainda hoje é a ideologia dominante, por isso se torna necessário desconstruí-la, mas está de tal modo entranhada nas mentalidades e é tão pervasiva que se torna muito difícil ter sucesso na tarefa. O mais que se pode fazer é mostrar que ser mãe e ser pai, conquanto prazeroso e gratificante, não é tudo na vida de uma pessoa e que, sobretudo, a maternidade não deve ser usada para punir as mulheres e limitar o seu leque de opções de vida.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

O conceito de sexo como posse

O sexólogo austríaco Otto Weininger (1880-1903), no livro Sex and Character, publicado em 1903, dá-nos conta do entendimento que têm da relação sexual; esta, em sua opinião e na opinião dos sexólogos da época e mesmo posteriores, pressupõe a passividade e dependência da mulher que, muito convenientemente transposta para as relações sociais entre homens e mulheres, permitirá manter as tradicionais e defendidas relações de domínio/submissão.

«A mulher não deseja ser tratada como um agente activo, ela quer permanecer sempre e em toda a parte – e é nisso que precisamente consiste a feminilidade – puramente passiva, e sentir-se ela própria na dependência da vontade de outrem; ela apenas e tão-somente quer ser desejada fisicamente e ser possuída como uma nova propriedade.»

Este conceito de sexo como posse da mulher pelo homem - obviamente sem reciprocidade – foi o prevalecente ainda no decurso do século XX; mas hoje é algo que repugna a muitas mulheres e mesmo a alguns homens; de resto, desde sempre, estou em crer que o homem apenas imaginou possuir a mulher através do acto sexual e que ela aquiesceu a entrar no «jogo», por necessidade de sobrevivência, nuns casos, e por pura conveniência pragmática, em outros.
Weininger dá todvia um passo interessante, essencializa uma situação puramente contingente e procura fornecer-lha uma base ontológica permanente: faria parte da essência da mulher amar a passividade e a submissão. Mas, como bem sabemos, só as coisas são possuíveis e mesmo estas de modo efémero; a posse de uma pessoa é uma impossibilidade porque uma vez possuída deixa de ser pessoa e é transformada num objecto, desprovido de vontade e de autonomia. O filósofo francês Jean Paul Sartre percebeu bem a questão, quando escreveu:

“O homem que quer ser amado não deseja realmente a escravização da amada … A total escravização da amada mata o amor do amante. Se a amada se transforma num autómato, o amante reencontra-se a si mesmo sozinho. Por isso, o amante não deseja possuir a amada como se possui um carro. Ele exige um tipo especial de apropriação. Ele quer possuir uma liberdade, enquanto liberdade, ele quer ser amado por uma liberdade, mas exige que esta liberdade deixe de ser livre.” (1)

Desta caracterização decorre que, segundo Sartre, o desejo sexual tem um objecto impossível porque o que ele quer possuir, aquilo que o satisfaz, assim que for possuído, deixa de existir enquanto tal: uma vontade livre, uma vez possuída, deixa de ser vontade e deixa de ser livre e aquele que ama não pode querer que tal aconteça. Mas claro que os sexólogos de serviço no século dezanove e mesmo no século XX não se aperceberam desta contradição e desse modo deram um contributo inestimável à perpetuação de uma situação que menorizava e inferiorizava as mulheres.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

O cérebro cor de rosa

A tentativa de naturalizar as diferenças entre homens e mulheres e justificar papeis e lugares sociais, de que Aristóteles foi o ilustre pioneiro e de que Darwin, mais de dois mil anos depois, foi um lídimo representante, continua na ordem do dia. Mas hoje as mulheres já estão apetrechadas com cultura humanística e científica para lhe responder. É o que faz Cordelia Fine no livro Delusions of Gender. O artigo a seguir transcrita dá disso notícia.

O cérebro cor de rosa, Por Nurit Bensusan 30/09/2010 :

Homens de Marte, mulheres de Vênus... homens são melhores em entender mapas e mulheres, em entender pessoas... homens gostam de carros e armas e mulheres, de bonecas e roupas... A lista poderia ir muito além. Preconceitos sobre gênero, embalados numa roupagem "científica" e agora, cada vez mais, "genética" ou "neurológica", estão em todos os lugares, desde conversas de bar até livros aparentemente sérios.
Cordelia Fine, uma psicóloga escritora, em seu novo livro, Delusions of Gender, mostra que essas "diferenças" de gênero não resistem a um exame mais profundo. Com toda uma parte dedicada ao neurosexismo, o livro fala sobre a sensibilidade da nossa espécie ao estereótipos de gênero e como as crianças são imediatamente, desde a mais tenra infância, saturadas com informações sobre a divisão social de gênero, a mais importante na nossa sociedade.
Numa entrevista muito interessante
( http://blogs.plos.org/neuroanthropology/2010/09/28/cordelia-fine-and-delusions-of-gender/), a autora diz que há muito mais interesse em achar diferenças no "hardware", ou seja no cérebro, do que em reconhecer que as diferenças são resultados da nossa sociedade. Assim, ficamos com a impressão que a situação que vivemos é natural, desejável e inevitável. Não é o que Cordelia acha...
O neurosexismo e o determinismo genético contribuem para manter tudo como está, forçando um conforto que na realidade não existe. Como se não houvesse mais o que fazer... se as diferenças estão nos cérebros, só nos restaria, aceitá-las. Mas, como questiona o livro, será que é realmente assim?
URL:: http://blogs.plos.org/neuroanthropology/2010/09/28/cordelia-fine-and-delusions-of-gender/

domingo, 7 de novembro de 2010

Mulheres e dissonância cognitiva


Nós, mulheres, dado que somos forçadas a interiorizar um quadro de valores que frequentemente colide com as nossas necessidade vitais, somos presa fácil de um curioso fenómeno psicológico que se designa de dissonância cognitiva
A teoria da dissonância cognitiva foi desenvolvida na década de cinquenta do século passado; é uma teoria contra-intuitiva porque pressupõe que as nossas acções modificam as nossas crenças quando é costume admitirmos exactamente a situação contrária: julgamos que são as nossas crenças que estão na origem das nossas acções.

Os seres humanos manifestam uma constante necessidade de racionalizar e é essa necessidade que a teoria da dissonância cognitiva explica. Ela baseia-se em três pressupostos:

1. Os seres humanos são sensíveis às inconsistências entre acção e crença. Há inconsistência sempre que eu faço qualquer coisa que entra em contradição com um princípio em que acredito. Se eu acredito que uma mulher deve ter independência económica, mas caso e decido ficar no lar tratando do marido e filhos surge aqui uma contradição entre a minha crença e o meu comportamento.

2. O reconhecimento da inconsistência cria dissonância, que se caracteriza por um sentimento de desconforto, e motiva a resolvê-la.

3. A dissonância pode ser resolvida de três maneiras:
a. Mudo a crença
b. Mudo a acção
c. Mudo a percepção da acção

Partamos do exemplo citado:
(1) Posso tentar mudar a crença, convencendo-me que há valores mais altos do que a autonomia, adoptando outra crença, a crença que a mulher é por natureza um ser dependente que precisa da protecção do homem. Foi e é assim que muitas mulheres reagem e são ajudadas pelo condicionamento cultural a rejeitarem a crença de que a autonomia é um valor tão importante para uma mulher como para um homem.

(2) Posso mudar a acção: caso, mas estipulo bem que quero prosseguir uma carreira profissional. Também este caminho é seguido hoje por muitas mulheres.

(3) Ou posso mudar a minha percepção da acção: afinal fui eu que optei por ficar em casa, a decisão é minha e essa situação não vai limitar a minha capacidade de autonomia. A isto chama-se racionalizar a acção e frequentemente é uma forma de nos auto-mistificarmos.

Por isso convém estarmos atentas sempre que surge uma situação de dissonância cognitiva e tentar lidar com ela da forma mais inteligente.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Feminismo não é o contrário de machismo


É frequente encontrarmos comentários pouco abonatórios acerca do feminismo que supõem o princípio mais ou menos explícito de que o feminismo é o contrário de machismo e de que igualdade é o mesmo que identidade.
Ora esta confusão baseia-se num equívoco alimentado normalmente por quem se opõe ao feminismo. Senão vejamos. O machismo supõe a superioridade de um sexo sobre o outro, o feminismo supõe a igualdade entre os sexos. Igualdade não quer dizer identidade, há diferenças entre os sexos, mas essas diferenças não podem ser usadas para os separar em termos de hierarquia, de inferioridade de um em relação ao outro. E consequentemente é preciso garantir que os dois gozam dos direitos que são considerados inalienáveis da pessoa humana, dos quais a liberdade e a realização pessoal são fundamentais. O feminismo é basicamente a afirmação de que as mulheres são pessoas e têm os direitos que as sociedades reconhecem às pessoas, tratando-se assim de uma questão de elementar justiça.
Ser livre implica a capacidade para controlar a própria vida, tanto quanto possível, e qualquer entrave artificial a esse controlo é uma limitação iníqua dessa liberdade. Por isso é que o feminismo defende que as mulheres não podem ser discriminadas pelo facto de serem mulheres. O acesso à educação, ao exercício de diferentes profissões não lhes pode ser vedado, como foi durante tanto tempo, com o argumento de que são diferentes.
Liberdade e autonomia andam a par, ora como a autonomia supõe que a mulher não seja dependente economicamente do homem, as feministas incutem nas mulheres a ideia de que devem ter uma profissão, ganhar o seu próprio dinheiro, para puderem decidir acerca das suas próprias vidas. Ficar em casa a tratar do marido e dos filhos pode ser uma opção mas é bom não esquecer que vai ter consequências, e estas podem ser desastrosas para a liberdade e autonomia da mulher que seguir esse caminho.
E está na altura das mulheres exigirem dos seus companheiros apoio efectivo nas tarefas que visam o bem comum da família e de exigir que o Estado cumpra a sua quota parte no apoio à vida familiar. E não me venham com a ideia lamecha e muito conveniente para quem quer continuar a limitar as mulheres de que as crianças ficam melhor em casa com a mãe pois para aprender e socializar-se é muito mais rico o ambiente de um bom infantário ou jardim de infância do que o ambiente familiar muito mais pobre em estímulos. Claro que seria bom que os pais, tanto a mãe como o pai, estivessem mais disponíveis para a vida familiar, mas isso tem de ser conseguido com uma regulação diferente do mundo do trabalho e não às custas da mulher, pretendendo que, mais uma vez, seja ela a sacrificar-se. È tempo para dizer basta aos sacrifícios unilaterais, sacrifícios tem de ser partilhados, tarefas tem de ser partilhadas, o resto é demagogia.