Estou a ler um livro que aborda um tema pouco comum, o tema da injustiça epistémica[1], que levanta problemas éticos relativos ao sujeito enquanto sujeito de conhecimento, aquilo que em jargão filosófico se designa por sujeito epistémico.
Neste livro defende-se a tese de que com frequência as pessoas são vítimas de tratamento injusto – opressão, ou porque o seu testemunho é sistematicamente descredibilizado pelo facto de pertencerem a um grupo que é alvo de preconceito, mesmo que seja um preconceito residual - e aí a autora fala em injustiça quanto ao testemunho[2], ou porque não possuem o vocabulário e os conceitos que permitem descrever, explicitar e denunciar as situações de opressão que experienciam, e aí a autora fala de injustiça hermenêutica. Num caso ou no outro, acontece marginalização epistémica que se revela na existência de sujeitos que são desfavorecidos pelo facto de não terem acesso justo ao conhecimento ou de o seu testemunho cognitivo não ser levado em consideração. A marginalização epistémica atinge os grupos sociais desprovidos de poder.
Alguns exemplos permitem compreender melhor estes conceitos. Assim, quando um juiz não dá credibilidade ao testemunho de uma mulher agredida ou roubada que fornece a identificação do agressor, com o argumento de que ela, sendo uma pessoa muito emotiva e psicologicamente instável, pode estar a fazer confusão; ou quando uma jovem branca acusa um homem negro de ter sido molestada sexualmente e o seu testemunho recebe maior credibilidade de um júri do que o do homem que está a ser acusado, estaremos, segundo Miranda Fricker, perante casos de injustiça relativa ao testemunho. Tanto num caso como no outro é de supor a existência de preconceitos residuais que atingem mulheres - enquanto pertencentes a um grupo considerado menos capaz de conhecimento objectivo, e homens – enquanto membros de um grupo racial, considerado à partida mais capaz de perpetrar o acto que está a julgado.
A injustiça hermenêutica ocorre quando as pessoas não possuem os conceitos necessários para objectivar a situação de opressão que estão a viver e, por tal motivo, não conseguem lidar de forma eficiente com ela; significa que as pessoas não têm disponíveis recursos conceptuais para descrever e identificar situações que as podem prejudicar e assim nem tomam consciência clara delas nem são capazes de contra elas lutar.
Lembremos alguns exemplos significativos:
O conceito de violação - definido e explicitado pelo movimento feminista na década de setenta do século passado, inicialmente era um conceito difuso e só se entendia a violação como violação, pelo menos nos Estados Unidos, quando uma mulher branca acusava um negro dessa prática; ainda hoje, a violação marital ou a violação que ocorre em situação em que homem e mulher se conhecem e mantém um relacionamento, mesmo que esporádico (date rape), constituem situações em que alguns discutem se se pode falar de violação nesses casos.
Um outro conceito, o de assédio sexual, que também foi explicitado pelas feministas da década de setenta, permitiu que muitas mulheres se dispusessem a expor e a denunciar práticas que anteriormente lhes provocavam desconforto e mesmo danos psicológicos, e que só as prejudicavam a elas que se viam muitas vezes obrigadas a mudar de emprego ou a tomar outras atitudes, economicamente prejudiciais, em vez de denunciarem que estavam a ser alvo de abuso.
Também o conceito de violência doméstica, até então conhecido pelo eufemismo de «disputa familiar» na qual a polícia não intervinha, veio abrir às mulheres novas oportunidades na luta contra a opressão.
Constata-se assim que mesmo em sociedades liberais onde não há a intenção explícita de prejudicar grupos sociais que têm sido marginalizados, sejam mulheres, negros, judeus ou homossexuais, as práticas do quotidiano e os preconceitos residuais de que não nos apercebemos contribuem para manter a situação de desfavorecimento desses grupos. O conceito de injustiça epistémica é assim um conceito profundamente inovador com uma nítida dimensão ética, que deveria começar a preocupar a comunidade filosófica.
[1] Miranda Fricker: «Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing», Oxford University Press, 2007.
[2] O termo em inglês é Injustice Testimonial
Olá Adilia:
ResponderEliminarÉ exatamente essa a minha verdadeira luta, porque sei que existem milhares de mulheres em todo o mundo sofrendo esse tipo de preconceito de abuso, de violência, e infelizmente elas não podem fazer nada, a justiça não faz nada e por ai vai.
A violência emocional, ou moral, mata tanto quanto a violência física, só que a pessoa não tem marcar "visíveis" para mostrar para a sociedade. Ai vem as depressões os suicídios, os abandonos do lar, e por ai vai.
E a mulher ou a vitima, fica sendo dada por louca, desequilibrada mental, e coisas bem pior.
Abraços.
Fátima