Para as feministas é muito desconfortável reconhecer a força e a importância dos movimentos anti-feministas porque de facto é difícil aceitar que mulheres possam estar contra os direitos das mulheres; por tal motivo, as feministas sempre tenderam a desvalorizar o anti-feminismo e a considerá-lo um fenómeno marginal, afirmando-se mais preocupadas com a indiferença de mulheres do que propriamente com a oposição. Mas esta atitude lembra aquilo que se designa de política da avestruz de esconder a cabeça na areia para não ver os problemas como se assim eles deixassem de existir.
Temos de reconhecer que um número muito significativo de mulheres não se têm revisto nos objectivos propostos pelo feminismo, ou porque o feminismo lhes é apresentado de forma extremamente antipática ou porque de facto a sua visão do mundo e os valores que perfilham podem ser postos em causa pelo feminismo. Precisamos também de abandonar a visão de que as anti-feministas são marionetas manipuladas pelos homens; umas serão, outras não, o que é um facto objectivo é que muitas mulheres estão empenhadas em manter um processo que as feministas denunciam como opressivo.
No século XX, em dois períodos diferentes, assistimos ao espectáculo deprimente de ver mulheres em luta contra os direitos das próprias mulheres e isso num dos países mais evoluídos do mundo ocidental, os Estados Unidos da América. O primeiro período decorreu entre as últimas décadas do século XIX e as duas primeiras do século XX a propósito do sufrágio feminino. O segundo, nas décadas de 60 e 70 do mesmo século, a propósito da aprovação de uma emenda constitucional, conhecida pela sigla ERA (Equal Rights Amendment), que visava erradicar da lei qualquer forma de discriminação com base no sexo.
O ERA tinha sido proposto logo em 1923, mas não passou, e ficou na gaveta até à década de 60 quando as feministas da segunda vaga o colocaram novamente na agenda política. Foi aprovado na Câmara e no Congresso, mas, em seguida, a ratificação pelos diferentes Estados tornou-se problemática e o prazo estabelecido para a sua aprovação expirou em 1982, o que representou um sucesso nítido do movimento anti-feminista e um desaire considerável para as feministas, proponentes do ERA.
A luta contra esta emenda constitucional foi liderada pela anti-feminista Phyllis Schlafler que criou uma organização, o STOP ERA, para a qual conseguiu atrair um número considerável de aderentes. Muitas mulheres que aderiram ao STOP ERA eram membros de igrejas evangélicas cristãs e fundamentalistas ou católicas conservadoras; as suas crenças religiosas levavam-nas a opor-se à igualdade para as mulheres: percebiam o ERA como um instrumento legal que iria permitir tomar medidas contrárias à vontade divina; nesse aspecto, Schlafler ensinava que a Bíblia queria as mulheres companheiras dos homens, não suas iguais, e os padres católicos bem como os pastores protestantes, do alto dos púlpitos, reforçavam esta mesma mensagem.
Por outro lado, usando uma estratégia retórica que alguém definiu como «princípio da perversidade», Schlafly insistia que o ERA iria retirar às mulheres privilégios adquiridos e iria sobrecarregá-las com obrigações novas, nomeadamente a possibilidade de virem a ser recrutadas para o serviço militar. Claro que estava apenas a dizer uma meia verdade, pois a medida poderia contemplar excepções, e, embora numa primeira fase pudesse ter alguns efeitos negativos nas condições de trabalho de algumas mulheres, no longo prazo iria estabelecer um patamar de direitos iguais entre homens e mulheres. Mas, tal como já acontecera com o voto, que tinha sido pintado pelas anti-sufragistas como mais um fardo que as mulheres teriam de carregar, também agora se apresentava como desvantajosa uma medida cujo objectivo era precisamente acabar com a desvantagem que as mulheres tinham de enfrentar, isto é, acabar com a discriminação legal contra as mulheres.
O ERA constituía uma bandeira para as feministas que lutavam pela igualdade das mulheres, mas as líderes anti-feministas, como Schafler, conseguiram convencer as suas apoiantes de que o Era só podia ser uma medida negativa que deviam rejeitar, já que era proposto pelas feministas e estas ameaçavam a família e a ordem social instituída, propondo leis facilitadoras do divórcio e do aborto e defendendo o que então se designava de «amor livre». Com esta hábil retórica, os valores tradicionais pareciam em perigo e assim já não é tão surpreendente que tantas mulheres se tenham mobilizado mais uma vez numa luta contra os direitos das mulheres.
Um pequeno aparte sobre o conceito de «amor livre» que as feministas defenderiam e que tanto assustava a sociedade tradicional e as mulheres que nela se integravam. O que as feministas defendiam, de uma maneira geral, é claro, podendo haver algumas excepções, era que as mulheres pudessem fazer, tal como os homens, as suas escolhas em termos de sexo, sem serem penalizadas socialmente por isso. Antes de se aventar esta hipótese, a única possibilidade de vida sexual para uma mulher, a única em que ela não era penalizada era no casamento; que uma mulher quisesse ter uma experiência sexual sem um comprometimento sério era visto como uma imoralidade; de resto, ainda hoje se considera que um homem promíscuo é um «garanhão», mas apelida-se de «vadia» uma mulher promíscua »; o conceito de promiscuidade sexual implica o de relação sexual sem comprometimento que não seja o do mútuo consentimento entre as partes e o da experiência pelo prazer que ela possa proporcionar, na aceitação de que pode haver sexo, e sexo gratificante, sem amor, embora obviamente seja de esperar muito mais do sexo com amor.
Ora, se ainda hoje este é um tema tabu para muitas mulheres - que foram socializadas para só aceitarem o sexo com amor e com casamento, podemos supor quanto este tema era fracturante nos anos 70 do século passado e como se podia diabolizar as feministas e alienar a simpatia de muitas mulheres, provavelmente da maioria, em relação ao feminismo.
Neste caldo cultural era previsível que as anti-feministas não perdessem a oportunidade de explorar os temores e os preconceitos das mulheres, levando-as a atacar quaisquer medidas propostas pelas feministas, neste caso o ERA. Além do mais, as líderes anti-feministas matavam dois coelhos de uma só cajadada: ao mesmo tempo que atacavam o feminismo também criticavam o liberalismo político que se mostrava inclinado a promover as reformas feministas, aprovando legislação sobre os direitos das mulheres, e também atraiam muitas pessoas com valores religiosos tradicionais para a direita política e até para a extrema-direita; nesse aspecto não é de negligenciar o contributo que o anti-feminismo deu à direita e as políticas de direita, o que não surpreende se percebermos que a lealdade da elite anti-feminista era uma lealdade de classe, isto é, para elas o importante era preservar os privilégios de que gozavam enquanto esposas, irmãs e filhas daqueles que detinham o poder.
Com boas razões, as anti-feministas, pelo menos as líderes do movimento, temiam as consequências que o feminismo teria no modo de vida e na política americana e por isso é que mesmo nos nossos dias, o movimento continua actuante, bem oleado (com fundos económicos consideráveis) e com enorme capacidade de mobilização e de intervenção. Enquanto isso as feministas continuam dispersas, divididas e o que é ainda mais grave, cultivando ódios de estimação entre elas próprias: ou porque o alinhamento político é diferente, ou porque os valores conflituam, ou porque discordam neste ou naquele aspecto, entrincheiram-se nas suas diferenças, enquanto o verdadeiro inimigo aproveita a oportunidade para reinar – enfim, uma história verdadeiramente lamentável! E não se pense que estou a falar apenas das feministas norte-americanas; será bom que cada uma de nós no seu país, no seu círculo de conhecimentos ou amizades comece a dar mais valor àquilo que nos une do que àquilo que nos separa.
É necessário que cada uma de nós se abra à crítica, seja receptiva à opinião de outr@s e, sobretudo, evite a intolerância e o fanatismo, tendo consciência de que a divisão entre as feministas só ajuda aquel@s que pretendem manter o «status quo».
Cara Adília utilizamos o conceito de Maternidade Intensiva exposto por vc no nosso texto atual. E deixamos o endereço de sua página (no roda-pé do texto) no caso de alguém que tenha interesse de debater e acessar seu blog para mais informações. Agradecemos a sua colaboração.
ResponderEliminarSaudações Feministas das Maçãs...
Caras maçãs podres
ResponderEliminarTentei comentar no V.blog mas não consegui, por isso aqui vai o meu comentário:
Claro que a ideologia da diferença tem uma agenda escondida que conhecemos bem. Mas penso que a análise dos problemas deve ser feita em termos de sistema patriarcal e seus mecanismos replicadores e perpetuadores e não em termos dos homens, enquanto individuos, que acabam também por ser vitimas do sistema. Peço desculpa se estou enganada, mas em minha opinião a mensagem que passa nos vossos textos é a de um certo «ódio» em relação aos homens e penso que era necessário evitar esse tipo de mal entendido.
Acho muito importante procurarmos aquilo que nos pode unir apesar das nossas divergências, pois a desunião só aproveita ao contra-ataque anti-feminista e ele está aí a todo o vapor.Ora há muitos homens que com todas as limitações inerentes a sua circunstância podem apoiar e tem apoiado a luta feminista.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarCara Adília,
ResponderEliminarSobre o que nos aproxima, concordamos em gênero, classe e etnia com suas palavras.
Em relação a suas colocações "ódio aos homens", reconhecemos que todas as pessoas sofrem as consequências sociais do sistema organizacional em que estamos inseridas, porém é a opressão é diferente para os sexos e com isso, se faz necessário responsabilizar as escolhas e omissões daqueles que lucram com a opressão dos povos, a fim de estabelecer os parâmetros da luta.
Todo sistema social é formado por pessoas, mulheres e homens, e identificar os mecanismos de reprodução é fundamental, contudo não é suficiente, pois, muitas vezes, nos tirou a força de luta. Ao objetivarmos historicamente os sujeitos da disputa social, nos reconhecemos como indivíduos e coletivo, identificando nas diferenças com o "outro", desta maneira comprovamos as injustiças que nos são cometidas.
Categorizar "os homens" e ö significado universalizante de "ser homem", dentro do processo de construção de classe sexual, parece-nos vital para designarmos os parâmetros e razões que definem o quê socialmente significa "sermos mulheres".
...Nosso ataque não se dá aos indivíduos homens, mas as instituições e colaboradores que se favorecem desta condição social. Materializamos os exploradores, para não desmaterializarmos o inimigo, com a abstração "sistema patriarcal". Evitamos o eufemismo "somos todos humanos", pois este é (e sempre foi) sinônimo de “homem”. Sinônimo este que com toda sua história, consequências e significado. Não nos identificamos com os “homens”, porque nunca fomos assim identificadas.
ResponderEliminarÉ preciso ter coragem para apontar os “inimigos”, pois se todas as pessoas fossem aliadas, não existiriam razões para que nós continuarmos a luta feminista.
Saudações feministas
ps: desculpe a demora, mas só vimos seu comentário agora.
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