quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Mulheres e liderança



“A Drª Alice Eagly, especialista em género e liderança, declarou recentemente que os seus estudos mostram que as mulheres têm mais probabilidades do que os homens de possuírem capacidades de liderança associadas ao sucesso. Isto é, as mulheres são mais dispostas para a mudança do que os homens – preocupam-se mais com o desenvolvimento dos colaboradores, ouvem-nos e estimulam-nos a pensar «fora da caixa», são mais inspiradoras e mais éticas.
Assim, pode perguntar-se porque é que são os homens que dominam posições de liderança e porque é que mulheres altamente qualificadas não chegam ao topo? Como a dr. Eagly refere, as mulheres têm de ultrapassar obstáculos para atingirem posições de liderança enquanto aos homens é oferecido «livre trânsito”. A nossa imagem de líder é “masculina” e por isso mais frequentemente selecionamos ou promovemos homens. Os homens controlam a contratação e favorecem homens em relação a mulheres. E temos relutância em modificar o statu quo.” *

*Texto traduzido do blog Psychology Today.

sábado, 6 de agosto de 2011

O feminismo e a melindrosa questão do aborto


Em Alas, a blog, coloca-se a questão de decidir se pode considerar-se feminista alguém que, na questão do aborto, adere à posição pró-vida. Pelo interesse do tema, resolvi fazer uma tradução livre do texto aí apresentado:


“Não tenho problema em aceitar que mulheres «que genuinamente acreditam que o aborto implica eliminar uma vida humana, também podem ser feministas. Mas ao mesmo tempo, ser uma feminista, implica opor-se com consistência a políticas que prejudicam o bem-estar, autonomia e igualdade das mulheres. De outro modo, ser feminista perderia o sentido.
Pode alguém pró-vida ser feminista? Penso que sim, se «pró-vida» for definido como alguém que acredita que preservar a vida fetal é essencial. Se as ‘feministas pró-vida’ forem pessoas que consideram essencial tanto o preservar a autonomia das mulheres como a vida fetal, essas pessoas deverão dedicar-se a procurar baixar o índice de aborto – mas quererão fazer isso através de meios que valorizam a autonomia das mulheres, usando meios não coercivos para reduzir a procura por aborto. Isso não significa que elas tenham de aceitar índices de aborto elevados. No mundo real, os países que praticam tais políticas, Bélgica e Suíça, por exemplo, têm níveis de aborto incrivelmente baixos. Não há conflito entre querer liberdade para as mulheres e querer preservar a vida fetal.
Em contraste, uma feminista pró-vida que é a favor da proibição do aborto – com o enorme prejuízo que essa proibição implica para autonomia, liberdade e igualdade das mulheres e a despeito do facto de que essa proibição não preserva a vida fetal melhor do que outras políticas – está a tratar a autonomia das mulheres como se fosse algo não essencial. (…) Se pessoas que atiram pela janela a autonomia e a igualdade das mulheres são feministas então o termo perdeu todo o sentido.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Das desvantagens do modelo sexual de domínio/submissão


Continuar a insistir num modelo sexual de domínio/submissão, com homens ativos/dominadores e mulheres passivas/submissas, não é de modo nenhum irrelevante para a manutenção da ordem social existente, uma ordem que ainda é, sem sombra de dúvida, de supremacia masculina. Não perceber as implicações sociais deste modelo sexual é muito comum e acontece com as próprias mulheres, as primeiras a não entenderem como os seus desejos foram moldados pela cultura dominante em que cresceram e foram educadas.
A prostituição, a pornografia, mas também a violência doméstica, a violação e até mesmo o assédio sexual, cada um destes 'instrumentos’ cumpre à sua maneira uma função: a de mostrar as mulheres como objetos passivos manipulados pelos homens, destinados a satisfazer os seus interesses e necessidades. Neste contexto torna-se muito mais difícil a afirmação social e o sucesso das mulheres em campos como a economia, a cultura ou a política; desse modo, a desigualdade mantém-se e replica-se, sem ser necessário fazer intervir outras medidas, porventura, hoje, politicamente incorretas, e atribuindo-se a situação a constrangimentos naturais.
Senão vejamos, se as mulheres gostam de ser sexualmente dominadas, como o modelo pretende e nos quer fazer crer, então não se encontra uma justificação forte para punir a violência doméstica pois esta será mera expressão da agressividade e dominância masculina que as próprias mulheres aceitam e desejam no campo sexual. O mesmo se passa com a violação e com a presunção de que no fundo qualquer mulher gosta de ser dominada logo gosta de ser violada que é apenas uma outra forma de dominação. De resto, o que é que a pornografia main stream faz que não seja erotizar constantemente a dominação masculina e a submissão feminina! Por outro lado, não é a prostituição a prova provada de que as mulheres estão disponíveis para satisfazerem os homens a troco de dinheiro, para serem usadas e abusadas como objetos?
Tudo isto permite que se contem histórias incríveis mas infelizmente verídicas como a de um magnate brasileiro, rei já não sei de quê, que nos seus oitenta gosta de se mostrar acompanhado por mulheres jovens e bonitas. Instado se esperava que elas gostassem dele respondeu: sabe, eu gosto muito de camarões, mas, quando vou ao restaurante e encomendo, não pergunto aos camarões se gostam de mim, limito-me a comer e a pagar.
Muito instrutivo, não?! Mas voltemos a aspetos mais teóricos. Postular essências metafísicas, neste caso de homens dominadores e de mulheres submissas, é um exercício filosófico, mas não é, como erroneamente se supõe, um exercício inócuo, os filósofos, contrariamente a uma opinião muito divulgada, não dão ponto sem nó. É que se aceitarmos essas essências, temos de aceitar as consequências que delas decorrem e que procurei evidenciar atrás, é uma questão de lógica que nos ensina a extrair consequências a partir de premissas, se não desejamos aceitar a conclusão como verdadeira temos de denunciar a falsidade da premissa de que partiu, mas, se aceitarmos a premissa como verdadeira então a conclusão (lógica) também será verdadeira.

Por tudo isto eu gostaria que uma mulher pensasse duas vezes antes de dizer que para ela o homem tem de ser dominador e que é assim que se sente sexualmente estimulada; ou melhor, ela até pode sentir isso, pois ninguém manda nos seus desejos, mas pode perceber que não é responsável por eles e se eles a colocam numa situação de vulnerabilidade é melhor começar a pensar em substitui-los por outros, é uma tarefa tremendamente difícil, mas se calhar não impossível. Nenhuma pessoa gosta de ser dominada; nem mesmo os animais, experimente prender os movimentos ao seu cão ou gato e aguarde… Você pode é gostar da ideia de que é dominada porque lhe inculcaram essa ideia na sua cabeça, a convenceram de que gosta, de que é assim que deve ser e foi condicionada a associar o prazer sexual a essa ideia. O fisiologista russo Pavlov, a propósito de cães, explicou muito bem como é que estes mecanismos funcionam. Nós não somos cães, mas somos animais, às vezes, para meu gosto, demasiado amestrados.
Está na hora de parar para pensar e dar um pontapé em ideias feitas para nos tramar.

sábado, 23 de julho de 2011

Porque é tão difícil resistir à objetificação


Vem este post a propósito daqueles que insistem em considerar que o facto de os homens objetificarem as mulheres é algo natural, normal e desejável tanto para os homens como para as mulheres. A reflexão que se segue procura lançar alguma luz sobre tão momentoso tema e é inspirada na leitura de Simone de Beauvoir.

Dada a ambiguidade da existência humana, Beauvoir faz-nos perceber que ser um ser humano, independentemente do sexo, é sempre correr o risco de auto-objetificação; esse risco é particularmente exacerbado para as mulheres, porque em relação a elas, diferentemente do que acontece com os homens, tudo na sociedade e na cultura as convida a desistirem de se afirmarem como indivíduos dotados de autonomia e de capacidade para transcenderem a experiência imediata, numa palavra, tudo as convida a desistirem de viver uma vida genuinamente humana.
Cada ser humano é simultaneamente um sujeito dotado de consciência, capaz de transcender o dado, e um objeto corpóreo que pode ser, e é, alvo dos juízos dos outros. A separação sujeito/objeto, referida por Beauvoir e também por Sartre, embora desprovida de uma base ontológica - tal como Descartes a tinha entendido - subsiste porque o eu consciente expressa-se através do corpo e o corpo é o que os outros vêem. Beauvoir não aceita o bi-substancialismo nem o dualismo antropológico; para ela, como para Sartre, no ser humano, mente e corpo são indissociáveis, mas o que ocorre é que do ponto de vista fenomenológico - do que aparece - eu experiencio-me como um sujeito, mas os outros experienciam-me como um objeto, isto é, a nossa experiência é uma experiência de dualismo. Ou, se quisermos reciclar a terminologia, é uma experiência de uma certa tensão entre imanência e transcendência, a primeira prende-nos ao dado, a segunda impele-nos a ir mais além.
Negar-se a encarar esta realidade, afirmando uma subjetividade pura ou negando-a totalmente - aquilo que Sartre designa de má fé – foi, segundo Beauvoir o que ocorreu ao longo do processo histórico com o homem a perceber-se como sujeito e a procurar, por contraponto, perceber a mulher como objeto. Para as mulheres, como os homens tendem a objetificá-las, a primeira reação é anteciparem-se ao lance e objetificarem-se a elas mesmas, mas com isso só simplificam a tarefa, desistindo de assumir uma existência autêntica, independentemente do risco e da angústia que possa comportar.
Posto isto, malgrado todas as dificuldades, para que as mulheres se realizem como seres humanos é necessário não apenas que os homens parem de as objetificar como elas próprias têm de resistir à tentação de se objetificarem a si mesmas e têm de procurar assumir-se como sujeitos responsáveis pela sua vida, com uma palavra a dizer àcerca de si mesmas e do mundo que as rodeia.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Mais mulheres nos órgãos diretivos das empresas


A exemplo da Noruega, que já nos idos de 2003 adotou medidas para reforçar a presença feminina nas administrações das principais empresas do país, e da Finlândia, que tornou obrigatória a justificação por parte de empresas que não apresentem representação feminina nos seus órgãos decisórios, a Comissão Europeia parece ter acordado finalmente para o problema e por 543 votos a favor, 109 contra e 29 abstenções aprovou medidas tendentes a contribuírem para a sua resolução, assim, se necessário, prevê mesmo o estabelecimento de quotas para o ano de 2012 para que se atinja uma percentagem de 30% em 2015 e de 40% em 2020 em órgãos de direção das empresas dos Estados membros.
Rodi Kratsa, vice-presidente do Parlamento Europeu, no debate prévio à aprovação das medidas, reforçou a ideia de que a presença de mulheres nos órgãos administrativos das empresas não é só uma questão de ética e de igualdade de oportunidades mas também é um elemento estrutural para a competitividade das empresas e para o crescimento económico dos países.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Educação e estereótipos de gênero


A experiência sueca de educação pré-escolar que se propõe atingir uma educação neutral do ponto de vista de gênero tem levantado alguma celeuma no país e mesmo no estrangeiro por parte de pessoas que se mostram muito preocupadas com eventuais prejuízos que pode provocar nas crianças face à definição/indefinição de papéis de gênero.
Um dos argumentos invocado por quem se opõe à experiência insiste em que a diferenciação de papéis não precisa de ser acompanhada de inferiorização do papel feminino em relação ao masculino; assim por exemplo, brincar com bonecas ou brincar com carrinhos, diz-se, é igualmente valioso. Mas, se refletirmos um pouco, percebemos a fragilidade do argumento: veremos que estas brincadeiras só aparentemente são igualmente avaliadas porque enquanto a primeira apenas prepara e condiciona a menina para um papel, considerado natural, a outra antecipa um percurso de vida que nada terá de natural, orientado para eventuais profissões e intervenção no espaço público. Parece necessário e importante preparar as meninas para o seu futuro papel de mães mas não se considera que uma preparação equivalente deva ser ministrada aos meninos.
O que se verifica é que a diferenciação de papéis tem sido acompanhada da desvalorização do papel feminino e é preciso romper este ciclo, que toda a nossa cultura favorece; se uma mulher se limita ao papel de esposa e de mãe encontra-se automaticamente em desvantagem em relação ao homem porque, ao não transcender essa condição, não se afirma como um ser autónomo e criativo.
Outros acusam os métodos pedagógicos utilizados na Egalia e em outros-jardins-de infância suecos de visarem condicionar mentalmente as crianças, como se só aí existisse condicionamento mental. Esquecem que todas as sociedades ensinam relações de género só que o fazem seguindo o modelo de dominância masculina que nunca perturbou essa ‘boa gente’, agora tão incomodada quando se procura ensinar igualdade nas relações de género.
Jay Belsky, especialista em psicologia infantil na Universidade da California, mostrou-se muito preocupado com a eventualidade de os meninos, impedidos de correrem e de brincarem com paus, que imaginam serem espadas, perderem características masculinas. Este psicólogo ignora que educar os jovens para serem ’verdadeiros homens’ de acordo com um padrão de masculinidade que valoriza não apenas a assertividade, mas também a agressividade, é prepará-los para serem agentes de violência doméstica e social, para engrossarem a população prisional e para virem a ter pela frente uma baixa perspetiva em termos de longevidade. Ignora que as sociedades em que as relações de género são mais igualitárias não só apresentam melhores índices de saúde física e mental como vivem relações familiares menos conflituosas e mais compreensivas.
Tudo leva a crer que o condicionamento mental só é bem aceite e não levanta qualquer problema quando é aquele que a sociedade patriarcal realiza com enorme sucesso através de uma panóplia de instrumentos educativos formais e informais que moldam rapazes e raparigas no decurso do processo de aculturação. Tentar interferir com a norma de dominação masculina ainda vigente na sociedade patriarcal, esse parece ser o crime da Egalia e dos outros jardins-de-infância que seguem o novo modelo educativo.

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Suécia - estereótipos de género e educação



Na Suécia, o currículo nacional para o pré-escolar tem como objetivo básico ultrapassar os estereótipos de género. A Suécia reconhece que, mesmo numa sociedade que de há muito se preocupa com a igualdade, os rapazes ainda continuam a usufruir de um tratamento de favor que não é justo.
Assim, em Estocolmo, no Egalia (Igualdade), jardim-de-infância de referência, o pessoal é ajudado por especialistas em psicologia de género a fim de identificar e evitar vocabulário e comportamentos que reforçam estereótipos. Os jogos Lego e outros blocos de construções estão intencionalmente colocados perto da cozinha, para assegurar que crianças não estabelecem barreiras mentais entre cozinhar e construir.
A diretora do Egalia, Lotta Rajalin, preocupda em favorecer um clima de tolerância em relação a gays, lésbicas, bissexuais e transsexuais, tira de uma estante uma história de duas girafas-macho que estão tristes por não terem crias – até que encontram um ovo de crocodilo abandonado… Em quase todos os livros de histórias para crianças entram casais homossexuais, pais solteiros ou crianças adotadas. Não há nada parecido com a Branca de Neve, Cinderela ou outras clássicas histórias de fadas percebidas como tendentes a cimentar estereótipos. (notícia aqui)

Qualquer semelhança com o que se passa no nosso país (ainda) é pura coincidência.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Para uma interpretação de Sade


Simone de Beauvoir em Faut-il Brûler Sade, publicado em 1951, fornece uma interpretação da vida e obra de Sade que merece alguma reflexão.

Na vida sexual de Sade encontramos o desejo de dominar e violentar mulheres e de procurar exercer sobre elas diversas formas de tortura e de humilhação. No sentido de procurar compreender este tipo de comportamento, aquilo que Simone de Beauvoir pergunta é qual é o objetivo de Sade? O que é que ele pretende alcançar, onde quer chegar?
Segundo Beauvoir, em Sade, a sexualidade não é a chave para se compreender o seu comportamento pois esta precisa de ser explicada e é já algo secundário. Beauvoir vai interpretar a vida de Sade, considerando o que ele fez dela, na assunção de que tal reflexão projeta luz sobre a condição humana.
De acordo com Beauvoir, embora pareça problemático, porque estamos habituados a pensar em sexo em termos de força instintiva, para além do nosso controlo, a sexualidade é uma expressão de liberdade; isto não quer dizer que podemos decidir ou escolher a nossa sexualidade, mas que, ao vivê-la, exprimimos a nossa liberdade, nos afirmamos como sujeitos que tentam escapar à contingência e à faticidade. Através do sexo, Sade afirma-se contra a lei, recorrendo a uma justificação ética cuidadosamente elaborada, numa palavra, realiza-se; luta contra uma ordem social e política que considera injusta e hipócrita, através de um comportamento de rebelião individual que lhe permita restaurar a sua autenticidade.
Beauvoir explica. Sade pertence a uma aristocracia decadente que perdeu real poder; na época, o privilégio de classe de que a aristocracia gozava deixa de ser possível e Sade ressente-se com essa perda; no mundo burguês em que é obrigado a viver nada o distingue dos demais cidadãos, nada permite garantir-lhe um destino singular; mas na sua vida sexual e no imaginário que constrói ele pode ser um déspota feudal, e pode encontrar aí um mecanismo de compensação para a deterioração da sua condição social. As suas raízes de classe predispõem-no contra a Revolução (1789) em curso com as terríveis perseguições políticas que, sobretudo no período do Terror, justificou; claro que ele não se opôs ao Terror em nome de valores aristocráticos, ele opôs-se em nome da natureza e da liberdade, mas isso não significa que na raiz não esteja o ressentimento pela perda dos privilégios da classe de que ele ainda fazia parte.
Beauvoir defende que as práticas sexuais a que Sade se entregava funcionavam como um mecanismo de recuperação de um poder que ele enquanto membro de uma classe privilegiada tinha perdido. Vivendo num meio burguês ao qual tinha de se adaptar, perdido na multidão de outros cidadãos, um dos meios de recuperar a sua individualidade, a sua subjetividade, seria na vida sexual. Com uma vida social pautada pelo conformismo e pela obediência às normas, ao frequentar os bordéis negava esse mesmo conformismo e exigia, no domínio sexual, a obediência a que tinha de se submeter no domínio social. Como Beauvoir escreve, Sade e outros seus contemporâneos igualmente bem-nascidos, “herdeiros de um nome em declínio (a aristocracia) que uma vez tinha exercido um poder concreto, mas que não mais detinha qualquer poder sobre o mundo, tentavam reviver simbolicamente, na privacidade da alcova, o estatuto de que tinham nostalgia, aquele do déspota feudal, soberano e solitário.” MBS 15
A sexualidade teria sido o caminho escolhido por Sade para reviver simbolicamente a privação de poder e de estatuto que o mundo burguês lhe retirara; poderia ter escolhido outro, mas preferiu fazer «da sua sexualidade uma ética» e erigir «gostos em princípios». MBS 15.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Sade, um herói! Como? Ouvi bem?


Várias pessoas, alguma intelectualidade de esquerda incluída, admiram o Marquês de Sade. Provavelmente, ou não conhecem a história toda, ou não se deram ao trabalho de analisar as reais implicações das ‘propostas’ por ele apresentadas.
Nascido em 1740, ainda no período do Antigo Regime, viveu na França da Revolução (1789); assistiu ao período do Terror, ao consulado napoleónico e ainda à restauração do Império. Foi preso pela primeira vez em 1767; mais tarde, entre 1778 e 1789, conheceu um longo encarceramento. Acabou por morrer em 1814, internado num asilo. As acusações que sob ele impenderam foram sobretudo ligadas a crimes de natureza sexual, mas também a rapto, escrita pornográfica e ainda ao não pagamento de dívidas. As suas vítimas mais frequentes, empregadas domésticas, prostitutas e atrizes, eram ‘subornadas’ ou de alguma maneira atraídas com promessas de recompensas futuras.
O facto de ter pago um preço muito alto pelo tipo de vida que escolheu e de ter denunciado com veemência a hipocrisia dos costumes - para ele, a virtude não tem nada de admirável porque não passa de uma fachada, é pura hipocrisia - conferiu-lhe uma aura de herói e de incompreendido.
Ademais, Sade não reduz a sexualidade à reprodução o que também soa bem às mentalidades mais desempoeiradas e permitiu a Simone de Beauvoir chamar a tenção para o facto de que para ele: «a sexualidade não é uma questão biológica mas um facto social».
A sua insistência nos mandatos da natureza, na força dos instintos e a denúncia da repressão à vida sexual a pretexto de propósitos civilizacionais prenunciam Freud. Sade critica na civilização a repressão do instinto sexual que considera perniciosa para o ser humano e por isso advoga a liberdade, ou como se dizia na altura o libertinismo, como compensação para contrabalançar essa opressão; defende a luta contra a repressão do instinto; proibir para ele é sempre um ato que, estando sob suspeição, não é natural.
Até aqui tudo muito bonito mas, bem, há sempre um mas e neste caso ele é francamente adversativo. Embora Sade tenha justificado os seus escritos e a sua vida em nome da liberdade, se lermos o que escreveu, verificamos que a liberdade de que ele fala é a do homem que exerce o seu poder discricionário, e mesmo torcionário, sobre a mulher. Afinal, cooptando o conceito de liberdade, ele acabou por se transformar num representante do sistema patriarcal que foi sempre opressor das mulheres; as suas detenções apenas ocorreram porque ele levou demasiado longe o modelo e retirou a cortina de hipocrisia que era fundamental à subsistência do sistema. É que mesmo a opressão, para ser suportável, não pode revestir a brutalidade que o Marquês reverenciava.
Numa perspetiva mais ampla, podemos reconhecer que a liberdade que Sade defendia só podia existir a expensas da liberdade dos outros, era a opressão dos outros. Sade insurgia-se frequentemente contra a universalidade dos princípios éticos abstratos que, em sua opinião, abafam o indivíduo e não lhe permitem realizar-se. Mas Simone de Beauvoir, na análise que nos deixou, mostra que é precisamente em nome do indivíduo que se pode criticar Sade, porque o indivíduo que se afirma afirma-se sobre outros indivíduos aos quais pode provocar reais danos, não pode pois fazê-lo de qualquer maneira, sem admitir para si mesmo certos limites.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Sade e as mulheres – alguns dados


Sade nasceu em 1740 na Provença, numa família aristocrata, com uma mãe ausente, por alegados motivos de saúde, e um pai que chegou a ser preso, acusado de sodomia. Estudou em casa, sob supervisão de um abade, e mais tarde em Paris. Terminados os estudos, ingressou na carreira militar, atingindo o cargo de capitão e deixando, já à altura, uma memória de libertinagem. Em 1763, submetendo-se contrariado à vontade dos pais, casou, mas logo de imediato alugou uma pequena habitação para se dedicar a aventuras extra-conjugais normalmente com prostitutas, criadas, ou mulheres às quais prometia benesses, nomeadamente trabalho.
Em 1768, estourou o primeiro escândalo que o levou à prisão. Atraiu a uma pequena casa que possuía na vila de Arcueil, destinada a encontros sexuais, uma pedinte, Rose Keller; segundo alegações da própria - a que a obra posterior de Sade veio a conferir verosimilhança - amarrou-a, chicoteou-a e em seguida verteu cera a ferver nas suas costas onde previamente tinha feitos alguns cortes superficiais; depois de ter atingido o orgasmo, fechou-a numa divisão da casa de onde ela conseguiu fugir e, levada à polícia por populares que a auxiliaram, relatou o sucedido. O escândalo repercutiu além fronteiras, Sade foi preso durante seis meses e só libertado por influência de familiares poderosos.
Em 1772 foi de novo acusado de ter sodomizado cinco prostitutas e, embora foragido, acabou por ser preso durante algum tempo. Entre 1778 e 1789 conheceu um longo período de encarceramento, cerca de doze anos, sob a acusação de, com a ajuda da própria mulher, ter abusado sexualmente de várias raparigas que trabalhavam na Casa da família; durante este longo período escreveu boa parte da sua obra.
Em 1791 publicou Justine ou Les malheurs de la vertu e em 1795 La Philosophie dans le boudoir. Em 1799 a publicação de La Nouvelle Justine levou-o de novo à prisão sob a acusação de pornografia. Após outros períodos mais breves de encarceramento, Sade acabou por morrer em 1814 num asilo em Charenton, onde tinha sido confinado sob a acusação de ter pago pelos ‘favores’ sexuais de uma jovem de dezassete anos.
Se pararmos para pensar, constatamos que Sade se relacionou sempre com as mulheres como um senhor com os serviçais, sobre os quais presumia ter direitos inquestionáveis. Por isso não surpreendem afirmações do tipo: “ A violação não é crime, é menos do que roubo, porque na violação tu restituis aquilo que foi usado”; quer dizero violador usa um bem mas não o rouba, até porque depois da acção o restitui.
A nível sexual, Sade recrutou, a troco de dinheiro ou de determinados favores, prostitutas ou mulheres vulneráveis que se prestavam às suas maquinações, nomeadamente serviçais da sua própria casa. A esposa foi cúmplice o que leva a supor que teria sobre ela ascendência bastante grande. Em relação à mãe, um seu biógrafo fala em ódio; mas sobretudo a mulher que ele mais odiou foi a sogra porque foi porventura a única capaz de lhe fazer frente, incomodada não só com o tratamento que ele reservava para a mulher como pelo facto de ter seduzido e raptado a filha mais nova, sua cunhada, que acabou por se retirar para um convento. A mulher, porventura subtraída à influência que Sade sobre ela exercia, também pediu o divórcio depois de ele ter saído do seu longo período de encarceramento. Mesmo assim, nos últimos dias de vida ainda gozou do apoio de uma antiga amante que se fez passar por sua irmã e se instalou num quarto do asilo de Charenton.

sábado, 25 de junho de 2011

“É Preciso Queimar Sade?”


Faut-il Bruler Sade? é o título de uma obra publicada por Simone de Beauvoir em 1951. Sendo Beauvoir uma feminista e Sade um homem que procurou ‘humilhar’ as mulheres através de práticas sexuais de dominação e que deixou testemunho escrito dessas práticas, ficamos um pouco surpreendidas já que a resposta dada à pergunta é decididamente negativa. Se soubermos ainda que o próprio filho do escritor, numa manifestação de repúdio, queimou uma obra do pai e que Albert Camus, contemporâneo de Beauvoir, rejeitou Sade considerando que nele se encontra o fermento do fascismo, ao fazer em pleno século XVIII a apologia de uma sociedade totalitária, a perplexidade aumenta; mas o propósito de Beauvoir é aceitar o desafio de refletir sobre o que se encontra implicado na obra e vida de Sade, na pressuposição de que o que ele escreve é reflexo de experiências vividas. Assim, 'não queimar Sade' não é aceitar as suas ideias nem é isso que Beauvoir vai fazer, é procurar aprender alguma coisa com elas, sobretudo se atendermos a quão perturbadoras são.
Sade tratou mulheres com crueldade extrema, infligindo-lhes dor física escrupulosamente premeditada; nunca considerou qualquer hipótese de reciprocidade na relação sexual e levou a uma forma extrema o modelo sexual do domínio/submissão, através de atos explícitos de violência masculina e de submissão feminina. Nele, aquilo que viria a ser conhecido pela expressão sado-masoquismo encontrou um lídimo representante. Não sendo de modo nenhum um modelo a seguir, refletir sobre Sade, em certo sentido, é refletir sobre a sexualidade humana; é perguntar-se, como Jen-Paul Sartre virá dois séculos depois a fazer, se é possível um indivíduo afirmar-se, através do sexo e do domínio sobre o corpo, como soberano absoluto perante o Outro.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Sadismo e ambiguidade da condição humana


Em L’Etre et le Neant ( 1943), Sartre apresenta uma teoria sobre o sadismo muito interessante e com forte poder explicativo. Esta teoria mostra a potencial utilidade de conceitos sartrianos para a análise feminista, a que todavia o próprio Sartre, cumpre dizê-lo, não prestou grande atenção. No caso vertente a explicação que dá sobre o sadismo fornece à análise feminista enquadramento conceptual para perceber mecanismos de controlo das mulheres relacionados com o ideal de beleza feminina e sua função.

Para compreendermos a explicação que Sartre nos dá do sadismo, temos de conhecer alguns aspetos da sua concepção de natureza humana. Segundo Sartre, ser humano é ser consciente – ‘ser para si’. Ser consciente não se baseia numa essência positiva, mas na negação: ser consciente de que não se é um objeto. O ser para si, não sendo um objeto, não está sujeito à causalidade e consequentemente é livre. Mas, a angústia habita-o porque, sendo pura espontaneidade, não se deixa definir e é responsável pelas suas próprias escolhas, por aquilo que decidir; a sua situação é instável e encontra-se em risco constante porque enquanto ser para si também partilha do ser objeto na medida em que é, e não pode deixar de ser, ‘ser para os outros’ e para os outros o ser para si pode ser percebido como um objeto. Neste contexto, podemos entender o título de uma peça de teatro de Sartre: O Inferno são os Outros.

‘Ser para os outros’ pode ter aspetos positivos, dependendo do modo como os outros me vejam - podem ver-me positivamente - mas nem por isso deixa de ser menos arriscado e incerto porque os outros podem mudar o modo como me vêem. Por isso a ambiguidade faz parte da condição humana: ‘ser para si’ é também ‘ser para os outros’ e assim a subjetividade pode ser posta em perigo.


Segundo Sartre, na relação amorosa, que está, enquanto relação interpessoal, sujeita à mesma tensão e à mesma ambiguidade, o sadismo pode ser uma estratégia para o eu (um eu) escapar à ambiguidade da sua condição. Aí, o sádico quer assegurar a sua liberdade - quer afirmar-se como sujeito livre - às custas da liberdade daquele/a que vai manipular, da sua vítima; o sádico quer eliminar do seu ser a dimensão de ser para os outros, quer eliminar a ambiguidade da sua condição que comporta a incerteza e o risco de ser objetificado. Para o conseguir vai usar a dor e a violência (consentidas ou não):


“ O esforço do sádico é aprisionar o Outro na sua carne por meio da violência e da dor, apropriando-se do seu corpo de modo a tratá-lo como carne que se revela enquanto carne. Mas esta apropriação vai mais além do corpo que é apropriado porque o seu propósito é possuir o corpo na condição de a liberdade do outro ser aprisionada com ele.” BN 403


A dor desempenha um papel fulcral na estratégia do sádico porque «na dor a faticidade invade a consciência», na dor a única coisa que a consciência apreende é o próprio corpo e assim, quando o sádico se apropria do corpo, apropria-se também daquela consciência. Consciência e corpo, segundo Sartre, estão de tal modo interconectados que nem se pode falar de união, por isso, se a única coisa que a consciência apreender for o corpo, o outro experiencia-se a si mesmo como um objeto e não tem a mínima hipótese de, por sua vez, objetificar o sádico; se o outro se reduzir ele próprio ao corpo, dominar o corpo é dominá-lo.


Ora o que é que a cultura da beleza e do narcisismo feminino tem a ver com a estratégia do sádico? Reparemos que esta cultura conduz as mulheres a preocuparem-se com os seus corpos, a fascinarem-se com os seus corpos, de tal modo que acabam por se reduzir a eles e têm prazer em serem tratadas como objetos, incapazes elas próprias de objetificarem o macho.
O ideal de beleza feminina, expresso sobretudo através dos media, na publicidade, nos shows e em muitos outros programas, apresenta como modelo mulheres jovens e belas. A partir daí, Juventude e beleza são o normativo para as mulheres e aquelas que não se preocuparem em seguir o normativo que se cuidem e sofram as consequências – esta é a mensagem com que constantemente são bombardeadas. Neste contexto, as mulheres são valorizadas com base na sua aparência física, os juízos de valor não são sobre as mulheres, são sobre o corpo das mulheres, não são admiradas enquanto agentes, são admiradas enquanto objetos, são admiradas como carne.
Com este mecanismo social de controlo que é o culto da beleza feminina, para as mulheres, o corpo passa a ser o objeto que de tal maneira absorve a sua consciência que se identificam com ele. E isto acontece não só com as que se conformam ao ideal de beleza feminina como com as que não se conformam que tudo farão para dele se aproximarem; o investimento da sua consciência é sobre os seus corpos, não sobre o mundo enquanto oportunidade de sobre ele agirem e de transcenderem a sua condição.
Se lembrarmos que objetificar o outro é uma estratégia de exploração e de opressão podemos perceber toda a negatividade que esta cultura da beleza feminina e do investimento narcísico comporta.