sábado, 16 de maio de 2009

O canon filosófico é misógino

Poderia supor-se que a misoginia apenas atinge o comum dos mortais do sexo masculino estando os elementos mais esclarecidos, e de entre estes os filósofos, a ela imunes. Mas como disse a insuspeita Madame Necker, esposa do todo poderoso ministro das finanças de Luis XVI e mãe de Germaine, futura Madame de Stael, nem mesmo eles conseguiram resistir aos preconceitos sexistas. Indo um pouco mais longe, as autoras feministas do século XX chegaram mesmo à conclusão de que o canon filosófico é misógino.
Quando falamos em canon, logo surge a ideia de padrão e de modelo, sendo o canon filosófico o corpo de textos que se consideram exemplares da própria filosofia. Neste sentido, e entre outros, os Diálogos de Platão, A Metafísica dos Costumes de Kant, ou o Discurso do Método de Descartes, são textos canónicos.
Dizer que o canon filosófico é misógino significa dizer que em obras filosóficas consagradas encontramos textos que transmitem uma percepção da mulher como inferior ao homem tanto no plano da racionalidade como no da agência moral. Em contrapartida, os escassos textos que defendem uma concepção mais igualitária foram escritos por filósofos considerados menos importantes, logo não canónicos. Desse modo, os autores que criticam o sexismo ou foram silenciados ou foi omitida a referência á parte da obra que se refere ao tema. Por exemplo, David Hume foi até há pouco tempo, pelo menos no Continente, um filósofo pouco conhecido e apreciado e mesmo assim a parte conhecida da sua obra é a teoria do conhecimento e não a ética. Condorcet foi praticamente ignorado e só agora começa a ser estudado. Do cartesiano Poulain de la Rouge praticamente ninguém ouviu falar. De Stuart Mill poucos leram On the Subjection of Women. Marx e Engels foram lembrados pelo materialismo dialéctico e não pela crítica das estruturas opressivas da familia patriarcal. Resumindo, as poucas vozes que se ergueram em defesa das mulheres não foram ouvidas, os académicos das universidades, que estruturam os currículos e seleccionam o que se deve estudar, ignoraram-nas olimpicamente.

O facto de o canon filosofico ser misógino tem óbvias consequências. Os filosofos exprimem em termos abstractos e gerais as ideias dominantes de uma determinada época e influenciam directa ou indirectamente a percepção que as pessoas têm da realidade. Em relação ás mulheres, o discurso dos filósofos não só não pôs em causa os preconceitos existentes como ainda os reforçou, fornecendo-lhes justificações que visavam a sua racionalização. Por exemplo, no século XVIII, em flagrante contradição com a defesa da igualdade de direitos de todos os homens, filósofos como Rousseau e Kant continuavam a justificar a opressão das mulheres e sua subordinação aos homens, com base em argumentos tão frágeis como o propalado destino biológico ou a utilidade social e não se lhes pode perdoar a justificação com o argumento de que na época as coordenadas mentais eram essas porque afinal, exactamente nessa mesma época, houve outros pensadores, os tais que não ficaram no canon, que criticaram e escrutinaram esses preconceitos, ao invés de os procurarem racionalizar. Alem disso, embora se reconheça que a filosofia é filha do tempo, também se reconhece que ela pode ter a capacidade para o mudar, pois é sempre reflexo, mas não um reflexo passivo, também influencia e modifica o meio em que surge.
Para além destes efeitos perversos, a misognia do canon filosófico teve outros ignorados durante muito tempo. Queremos com isto dizer que a parte da obra de um filósofo na qual ele exprime a sua perspectiva sexista sobre as mulheres não é um fenómeno lateral e secundário, passível de ser ignorado, por ser periférico ao seu pensamento relativamente a outras matérias; o que acontece é que a sua visão sexista acaba por repercutir-se na elaboração de conceitos fundamentais do seu pensamento. Se repararmos, no pensamento filosófico ocidental imperam as visões dicotómicas da realidade expressas em conceitos que se opõem e confrontam: razao/sensibilidade; objectividade/subjectividade; cultura/natureza; forma/matéria; espírito/corpo: nestes pares dicotómicos um dos polos tende a ser valorizado em detrimento do outro e em todos eles o elemento desvalorizado aparece revestido de características que são aberta ou implicitamente atribuídas às mulheres. Em contrapartida, por exemplo, a razão não é uma categoria neutra, mas é uma característica masculina que nas mulheres, supostamente, aparece enfraquecida e reduzida nas suas potencialidades, o mesmo se passando com as outras categorias filosóficas, acima enunciadas, e estas conceptualizações forneceram o enquadramento teórico que permitiu a dominação das mulheres na cultura ocidental, justificando o seu afastamento da esfera do conhecimento e da vida activa e perpetuando a nos papéis tradicionais.
Resta ainda dizer que o canon filosófico não só transmite uma visão profundamente sexista da mulher como também exclui completamente as mulheres, considerando que ou não houve mulheres filósofas ou, se as houve, foram irrelevantes. Mesmo importantes pensadoras do século XX como Hanna Arendt ou Simone de Beauvoir continuam praticamente ignoradas pelo canon.

2 comentários:

  1. También entre muchas otras se conoce poco a Aspasia de Mileto.
    Disculpen que no sé escribir en portugués.
    Afectuoso abrazo
    Tere Marin

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  2. E como Aspasia, há ainda muitas outras que foram completamente apagadas da tinta da história. Mas, Tere Marin, o mais grave é que mesmo nos nossos dias o pensamento vigoroso de mulheres intelectuais continua a ser considerado irrelevante. Isto é, os académicos que definem os curriculos continuam a ser homens que tendem a desvalorizar a perspectiva feminina e que continuam a defender aquela coisa estafada de a filosofia ser neutra do ponto de vista de género e independente do espaço e do tempo em que é produzida. Isto é, continuam a defender que a filosofia é um discurso puro, objectivo e universal; ora esta é que é uma universal e descarada mentira.

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