Já tive ocasião de exprimir a minha admiração por David Hume, um filósofo que fugiu em muitos aspectos à misoginia do Canon filosófico e que abordou de forma realista e não preconceituosa os problemas, evitando mistificar-se a ele próprio e aos outros. Esse realismo e essa ausência de mistificação estão presentes em vários domínios da sua reflexão e, de entre estes, na ética que propõe e na ética que critica.
A ética de Hume, rejeitando qualquer fundamento divino e recusando ancorar as condutas éticas num fundamento racional universal, procura alicerçar-se no sentimento e em traços de carácter positivos. Deste modo, para Hume é importante cultivar e desenvolver traços de carácter adequados e cultivar predisposições para aceitar certas virtudes das quais dependem as relações que as pessoas estabelecem na vida em sociedade. Mais do que identificar regras universais de conduta o que importa é procurar ser uma pessoa boa que cultiva a simpatia e afabilidade em relação aos outros.
No Tratado da Natureza Humana, Hume elenca diferentes tipos de virtudes. As chamadas virtudes marciais provocam-lhe comentários pouco abonatórios. Sobre as virtudes monásticas, como a abstinência sexual, o celibato, o jejum, a humildade, as mortificações e a penitência considera que:
«São rejeitadas em toda a parte por homens de senso porque não tem qualquer utilidade ou propósito. Bem pelo contrário, observamos que se opõem a todos os objectivos desejáveis, estupidificam o entendimento, endurecem o coração, obscurecem a imaginação e azedam o temperamento.»
Repare-se na coragem que é preciso ter para rejeitar estas «virtudes» tão exaltadas por uma sociedade em que a religião era todo poderosa e que ainda hoje encontram acolhimento em muitos e influentes meios.
Por outro lado, como virtudes positivas, Hume considera a compaixão, virtude natural, e a justiça - virtude artificial, relevantes para a vida em sociedade, pois delas decorre a aceitação dos outros e o correcto tratamento que devem merecer; mas mesmo assim teve a coragem intelectual de perceber que a justiça é uma virtude artificial que resulta da experiência social, das convenções e consensos.
Dadas estas posições de Hume não é de estranhar que a Igreja Católica tenha colocado no Índex todas as suas obras e que mesmo no Reino Unido tenha sido considerado O Grande Infiel. A Igreja da Escócia tentou mesmo excomungá-lo, mas amigos influentes evitaram o escândalo argumentando que se ele não era crente, então não poderia ser excomungado. Nada como o senso comum dos britânicos para alimentar a boa disposição. Mas, de certo modo, ainda hoje, Hume, apesar de respeitado, continua a ser um marginal e nisso também reside o seu encanto.
A imagem que escolhi para ilustrar este post reproduz um ritual de auto-flagelação de uma comunidade religiosa dos nossos dias e sucita-me estas perguntas: o que é que estes indivíduos estão a tentar provar? Como é que mais de dois séculos após a morte de David Hume continuamos a ter este tipo de humanidade? O que é que correu mal? Será que afinal virtudes monásticas e virtudes marciais até combinam?
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