quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Um brinquedo para a sua filha

Sou sempre tão crítica do sexismo na publicidade que hoje não resisto a fazer um intervalo nos meus textos sobre o anti-feminismo para mostrar um anúncio publicitário de um brinquedo para crianças, no caso meninas, que merece pelo menos uma mensão honrosa. Está na hora de mostrar que as meninas podem brincar com microscópios e podem ser boas alunas em ciências e quem sabe futuras cientistas. Depois do enjoo dos mais variados tipos de bonecas, barbies incluidas, é uma lufada de ar fresco; claro que o enquadramento cor de rosa se calhar era dispensável, mas mesmo assim é muito positivo.


Não esqueçamos que uma ciência feita exclusivamente por homens, como tem acontecido em grande parte, corre o risco da parcialidade e do preconceito, por mais que os cientistas apregoem objectividade e neutralidade, como já tive oportunidade de referir em outros posts sobre este tema. Por isso é muito importante e necessário que cada vez mais mulheres participem nessa nobre tarefa que é a construção de uma visão científica do mundo.

Os créditos pertencem ao blog Feminist philosophers que publicou esta imagem e se congratulou também com o evento: «On the one hand: Hurrah for girls using microscopes!On the other hand: Do girls really need a special pink microscope?On the third hand (I’m special): Anything that helps girls think they can do science is surely good. And maybe the pink microscope helps break down that “science is for boys” stereotype?

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Anti-sufragistas e lealdade de classe

As líderes anti-sufragistas norte-americanas pertenciam homogeneamente à classe alta – uma espécie de aristocracia urbana, e tinham acesso fácil ao mundo da governação por intermédio de laços familiares e de casamento, o que significa dizer que eram filhas, irmãs ou esposas de homens altamente colocados no mundo da finança, da indústria e da política. O facto de pertencerem à classe social dominante da América dos fins do século XIX é um elemento chave para se compreender a sua oposição em relação ao movimento de emancipação das mulheres. Em certo sentido, poderia dizer-se que para elas, especificamente, a emancipação não tinha grande significado, pois a sua posição era já influente e privilegiada e poderiam imaginar, com boas razões, que uma mais extensa democratização da sociedade só iria contribuir para uma diminuição dos seus privilégios de classe. Assim, por exemplo, quando refutavam a necessidade do voto para as mulheres com o argumento de que os homens representavam bem os interesses destas, até estavam com certeza a ser sinceras, porque a sua experiência pessoal era exactamente essa, como constatavam ao conseguirem atenção das altas instâncias governativas para qualquer solicitação que fizessem. Elas afinal já gozavam de muito poder e alargar o poder político conferido pelo voto a todas as mulheres não era coisa que as seduzisse, bem pelo contrário; além disso, tal como os membros masculinos da classe social a que pertenciam, desconfiavam das massas e receavam perder a hegemonia de que gozavam enquanto classe. Isto para dizer que as anti-feministas não eram tolas, nem eram anti-feministas por estarem colonizadas pelos homens, eram-no porque tinham a percepção de que iriam perder mais do que a ganhar com a emancipação das mulheres, em termos de estatuto, em termos de prestígio, em termos de poder real.

As líderes anti-feministas pertenciam a famílias descendente dos primeiros colonizadores da América, brancos, puritanos e de ascendência anglo-saxónica; essas famílias, através de políticas informais de endogamia no casamento, tinham conseguido manter-se separadas e distanciadas da restante população e, confundiam, muito convenientemente, os seus interesses com os interesses da nação americana.
Politicamente, as anti-sufragistas eram conservadoras e entendiam que o Estado devia imiscuir-se o mínimo na vida das pessoas; para elas a pobreza era uma manifestação de fraqueza de carácter, e os salários baixos das mulheres trabalhadoras resultavam, em seu entender, do fraco desempenho destas; viam pois estes problemas como problemas individuais e pessoais, não como problemas políticos. Para minimizarem os custos sociais da pobreza, dedicavam-se a actividades filantrópicas e de beneficência, as únicas consideradas compatíveis com o seu estatuto social. Estavam em claro confronto com as líderes sufragistas; estas, de uma maneira geral, eram mulheres com instrução superior, de estrato social médio, por vezes alto, que propunham reformas que se deveriam traduzir em contribuições do Estado em serviços sociais, encarando a pobreza mais como um problema político do que como uma questão pessoal. Claro que tais políticas reformista, além de representarem perda de prestígio para as senhoras da elite que se dedicavam à filantropia, iriam traduzir-se no longo prazo em aumento de impostos e esse era um ponto sensível que alienava muitas pessoas, não apenas as elites, que se viam atingidas por tais políticas das quais não seriam beneficiárias directas.
Podemos assim perceber porque é que as líderes anti-sufragistas pensavam como pensavam em relação ao sufrágio feminino, afinal a sua lealdade era para com a classe social a que pertenciam, mas é mais difícil entender como é que conseguiram convencer tantas mulheres de que o seu melhor interesse era rejeitar o voto e, portanto, a cidadania e a capacidade de intervenção na vida política. Para compreendermos essa situação paradoxal, temos de ter em mente que nos fins do século XIX e inícios do século XX, a América, embora formalmente uma democracia, era governada pela elite a que elas pertenciam e por esse facto tinham acesso fácil aos centros de decisão política, a recursos económicos e aos meios de comunicação social, que a mesma elite directa ou indirectamente controlava. Podiam rápida e oportunamente apresentar petições nos competentes órgãos de poder político legislativo e muitas vezes impedir que as propostas das feministas sequer fossem discutidas. Por outro lado, mesmos os meios intelectuais e até a comunidade científica - muitas vezes dependentes da elite no poder e dos seus patrocínios, tomavam posições públicas, através de artigos em jornais e revistas de larga circulação, que reforçavam os seus pontos de vista; a tudo isso acrescia a influência das Igrejas que não perdiam oportunidade para condicionar a audiência em sentido conservador.
Com esta parafernália de recursos, explorando o medo, a ansiedade e as ideias feitas das pessoas, acabaram por atrair à sua causa um número muito significativo de elementos da classe média e nesta das mulheres, o elo mais fraco. As anti-sufragistas profetizavam que o sufrágio iria provocar a hostilidade dos homens e até a sua deserção: deixariam de proteger as mulheres, pois o cavalheirismo, o sentido da honra e da responsabilidade para com a família iriam ser minados. Para muitas mulheres da classe média esta perspectiva parecia catastrófica porque não estavam preparadas para a emancipação, não tinham independência económica nem meios para a alcançar, e então as anti-sufragistas acenavam-lhes com a cenoura: aquelas que não se desviassem do ideal da «verdadeira mulher» não teriam com que se preocupar: enquanto esposas fiéis e mães devotadas seriam respeitadas, e viveriam com segurança e conforto no desempenho dos seus «sacrossantos deveres».

Resumindo, para compreendermos a dificuldade da luta pelo sufrágio feminino importa perceber que o contra-ataque anti-sufragista foi empreendido por mulheres com recursos em tempo e em dinheiro, com uma rede de relações extremamente influente, contando com o enquadramento religioso e cultural que lhes fornecia os necessários argumentos bem como a necessária audiência e conveniente divulgação. Mas cumpre também reconhecer que as anti-sufragistas souberam agarrar a oportunidade, tirando partido das circunstâncias que lhes eram favoráveis e mostrando capacidade para atrair e mobilizar aderentes e simpatizantes através de uma retórica exemplar e da exploração hábil dos Media que quase unanimemente se colocaram à sua disposição.

O fenómeno da luta anti-sufrágio, que à partida me deixava perplexa pois não percebia porque é que mulheres tinham empreendido uma luta contra um direito tão elementar das próprias mulheres e não compreendia porque é que não tinham sido desde logo denunciadas e a sua pretensão rejeitada, com o decorrer do estudo suscitou-me uma reflexão de sentido contrária, isto é, levou-me a perguntar como é que com tantos obstáculos e resistências foi possível ver finalmente reconhecido o sufrágio feminino.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Anti-sufragismo - retórica e persuasão

A reivindicação do voto para as mulheres foi formalmente apresentada em 1848, na Convenção de Séneca Falls, mas iriam ser precisos mais de 70 anos para a Constitução Americana a satisfazer. Claro que há muitos factores que explicam este sucesso tão tardio em relação a um direito elementar, mas, de entre esses, a capacidade retórica do movimento anti-sufrágio foi, em minha opinião, fundamental e deveria levar as feministas a repensarem as suas estratégias para evitar futuras derrotas, ou vitórias excessivamente adiadas.

As sufragistas tinham dois argumentos de peso: o argumento da justiça e o argumento da utilidade. O primeiro, baseado no princípio iluminista de que todos os homens – seres humanos – nascem livres e iguais em direitos, reivindicava o voto para as mulheres enquanto seres humanos a quem deveria ser reconhecido o direito de cidadania, isto é, a capacidade de participação na vida pública, em pé de igualdade com os homens. Mas as anti-sufragistas, aplicando as «regras da maioria» tentaram desvalorizar este argumento, mostrando que as mulheres que reivindicavam o voto eram um grupo minoritário e por isso a sua reivindicação era antidemocrática porque, se fosse satisfeita, iria impor a todo o sexo feminino aquilo que só alguns elementos pretendiam. Como evidência para corroborar este argumento citavam o referendo de Massachusets de 1895 em que a participação das mulheres tinha sido minoritária, para mostrar que o voto não interessava às mulheres, tanto assim que tinham tido oportunidade de votar mas tinham ficado em suas casas. Esta refutação do argumento apresentava a vantagem acrescida de descrever as sufragistas como pessoas agressivas que atacavam a sociedade democrática, distorcendo-se completamente a questão. Segundo as anti-sufragistas a situação das mulheres não era injusta, as sufragistas é que por inveja dos homens, por não conseguirem adaptar-se ao seu verdadeiro papel assim a percebiam. As sufragistas odiariam os homens não aceitando o papel que a natureza lhes reservara. E uma anti-sufragista da época podia retoricamente colocar a questão nestes termos:
«Terão todas as mulheres de suportar o fardo do voto, para conceder a algumas mulheres proeminência política?».

Com esta roupagem retórica, o voto deixava de ser um direito e passava a ser um fardo, uma responsabilidade, e aquelas que o reivindicavam faziam-no apenas para terem protagonismo, por inveja dos homens. A este tipo de refutação, chama-se, em linguagem popular, virar o bico ao prego: quando um direito é percebido como um fardo, não o assumir deixa de ser algo que a pessoa percepciona como injusto, bem pelo contrário. E aqui mais uma vez a retórica anti-sufragista numa frase curta e pregnante resumia magistralmente a tese defendida pelas anti-sufragistas: «O voto não é um direito negado é um fardo retirado»
Isto é, o voto deixava de ser uma questão de justiça e pretendia-se fazer passar a mensagem de que o exercício da cidadania acabaria por ser mais um fardo que algumas mulheres ambiciosas e carentes de protagonismo lhes queriam impor, quando na verdade o justo seria isentá-las desse «dever»; o exercício da cidadania bem como o cumprimento do serviço militar deviam incidir apenas sobre os homens; o governo era visto essencialmente como uma questão de lei e ordem e, assim como a ordem cabia por consenso aos homens (numa clara alusão ao serviço militar), o mesmo se deveria passar com a lei, isto é, com a governação.

A refutação do argumento da justiça obrigou as sufragistas a procurarem outro tipo de argumento, o da utilidade; com este teriam de mostrar/demonstrar que o voto na mão das mulheres seria um instrumento para mudar favoravelmente a situação das mulheres e a da própria sociedade. Mas as anti-sufragistas desarmavam este argumento desvalorizando os interesses das mulheres, exaltando o ideal da «verdadeira mulher» capaz de se sacrificar pelo bem-estar da família e realçando que o importante não era as mulheres e os seus interesses, mas sim o interesse e o bem-estar da sociedade como um todo. Desta forma ínvia e insidiosa, os interesses das mulheres deixavam de ser importantes e passavam a ser a mera expressão de mulheres egoístas e auto-centradas, como dizia um slogan da época: «Direitos das mulheres, sim, mas não à custa dos direitos humanos». De uma assentada, os direitos das mulheres deixavam de ser percepcionados como direitos humanos e eram menorizados como meros interesses que as verdadeiras mulheres, altruístas, abnegadas, sacrificavam generosamente aos interesses da sociedade como um todo.

As feministas foram ainda atacadas enquanto grupo, visando mostrá-las como extremistas e radicais, alinhadas politicamente com as esquerdas anarquistas ou socialistas, numa palavra elementos perigosos e desestabilizadores. Se as desacreditassem enquanto grupo extremista e radical, tornava-se mais fácil desacreditar as suas ideias e derrotar as suas propostas. No período em que decorreu a primeira guerra mundial, ainda deu muito jeito rotulá-las de antipatriotas pelo simples facto de algumas serem pacifistas e de terem apoiantes que também o eram, como aconteceu por exemplo com o filósofo britânico Bertrand Russell que desde a primeira hora apoiou o movimento sufragista na Grã-Bretanha. Em termos de retórica pode sempre apelar-se aos sentimentos mais profundamente enraizados na população e é disso exemplo a declaração proferida em 1915 num panfleto da New York Association em que o vermelho do socialismo é associado à cor amarela, identificativa do movimento sufragista:
«De facto, nós estamos ameaçados por um perigo vermelho que se esconde debaixo de uma capa amarela»

Esta é como sabemos uma estratégia recorrente de todos os contra-movimentos que, opondo-se à mudança, vêem papões em toda a parte e pretendem que as outras pessoas também os vejam, alienando assim a simpatia das pessoas para com aquelas que promovem a mudança.

As feministas eram também apresentadas e ridicularizadas como mulheres masculinizadas, agressivas, competitivas, não femininas, manobra que visava conseguir que a maioria das mulheres não se identificasse com elas. E, porque as feministas criticavam a instituição do casamento, acusavam-nas, pomposamente, de quererem substituir «os sagrados laços do matrimónio pela mera parceria de um contrato». Claro que se omitia muito convenientemente que os «sagrados laços do matrimónio» colocavam a mulher na dependência legal do marido a quem outorgavam o importante papel de chefe da família, podendo dispor dos bens da esposa e até de salários que ela eventualmente auferisse.

Todos estes aspectos permitiam que as anti-feministas acusassem as sufragistas de vários crimes de lesa pátria: pretenderiam arruinar o casamento, desconsiderando-o; dividiriam a família, criando discórdia, ao defenderem a competição com os homens; negligenciariam os seus deveres como mães e esposas, ao procurarem outras esferas de influência que não apenas a esfera doméstica. Tudo isto porque eram agressivas, desnaturadas, porque não eram «verdadeiras mulheres»!!
A partir deste quadro: não é de espantar que o voto tenha tardado tanto, é de espantar que ele tenha acabado por chegar! Se calhar isso aconteceu porque, afinal, como diz o ditado: «a justiça tarda, mas não falha!»

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Anti-feminismo - a ciência também dá uma ajuda

Nas últimas décadas do século XIX, os Estados Unidos, bem como os países desenvolvidos da Europa, passaram por um período de turbulência social que prenunciava transformações profundas: vagas de emigrantes de várias proveniências, agitação de trabalhadores na esfera industrial, reivindicações das mulheres pela igualdade de direitos criavam nas elites estabelecidas ansiedade e receio de alterações que lhes seriam desfavoráveis; por tudo isso, não é de surpreneder que a ciência e os cientistas que pertenciam a essas elites, se esforçassem por justificar a hierarquia classista, racial e também de género. No que às mulheres dizia respeito, o pano de fundo científico que veio a fornecer o racional para explicar e justificar o seu estatuto na sociedade da época foi a teoria de Darwin, um gigante dos tempos modernos, mas um gigante com pés de barro no que às mulheres diz respeito.

Na campanha contra o sufrágio feminino - que precisamente visava manter o status quo e garantir a estratificação social hierárquica, era necessário justificar o afastamento das mulheres da esfera pública mantendo a separação entre esta e a esfera privada. Invocava-se como argumento o próprio bem-estar das mulheres e o bem-estar da sociedade; isto é, de forma algo bizarra, a contestação do direito de voto para as mulheres era feita em nome dos «direitos das mulheres» que seriam, dizia-se, diferentes dos direitos dos homens. Mas, para dar força ao argumento, nada melhor do que avocar para a causa os préstimos de cientistas de nomeada.

Foram sobretudo homens de ciência ligados à anatomia, sociobiologia, psicologia e medicina que entraram na arena para mostrar quão equivocadas estavam as mulheres que exigiam o direito de voto e a participação na vida política. Vejamos alguns desses arautos dos «direitos das mulheres».

Edward Drinker Cope, (1840-1897), anatomista e paleontologista da Universidade de Pensilvânia, líder de uma escola neo-lamarkiana, defendeu que os caracteres adquiridos eram transmissíveis; essa teoria, que posteriormente veio a ser rebatida e desclassificada, serviu, no momento, para aconselhar as mulheres a não se imiscuírem em actividades masculinas, como as implícitas no voto e na participação política, porque, asseveravam, iriam adquirir traços masculinos e iriam transmitir esses traços às suas filhas. Tratava-se de uma autêntica campanha de terrorismo mental levada a cabo pela própria ciência o que lhe conferia força e credibilidade, sobretudo junto de populações menos esclarecidas. Assustar as mulheres com a perda da sua feminilidade pelo facto de votarem ou participarem em actividades políticos hoje parece apenas tolo e ridículo, mas temos de nos situar na época e no contexto em que o argumento foi utilizado para percebermos o seu alcance.

Herbert Spencer (1820- 1903), filósofo e sociólogo britânico, muito querido das elites, seguidor de Darwin e defensor da corrente que ficou conhecido por darwinismo social, defendia a ideia de que os ricos eram aqueles que se tinham mostrado mais aptos e que revelavam portanto superioridade intelectual e moral. Considerava ainda que era inútil alargar a educação para a saúde, segurança e bem-estar das populações porque essas medidas iriam aumentar a taxa de emigrantes pobres no país; se calhar pensaria que o melhor seria deixar que a «selecção natural exercesse a sua acção», eliminando aqueles que não se mostrassem aptos! De qualquer modo, estas teses serviam na perfeição para justificar a estratificação social; tudo muito vantajoso para a elite masculina branca de ascendência anglo-saxónica que detinha o poder económico, politico e cultural.
Em relação às mulheres, Spencer, colaborador da revista Popular Science Monthly, explicava, nos artigos aí publicados, que a participação na vida política não convinha às mulheres, com o argumento de que, dada a divisão e especialização dos papéis, a natureza teria suspendido o desenvolvimento mental das mulheres para preservar a sua energia para a reprodução. Spencer partia da analogia entre o corpo humano e uma máquina e enfatizava a importância da conservação de energia o que no nosso caso implicava a ideia de que as mulheres deviam limitar as suas actividades à vida doméstica para assim guardarem energias para a tarefa reprodutiva. Este era um argumento, e um argumento «científico» a favor da separação das esferas, ficando as mulheres restringidas à esfera privada da família, enquanto os homens se integrariam naturalmente na esfera pública que ficaria exclusivamente a seu cargo. Spencer ainda defendia que a especialização sexual - leia-se a diferenciação de papéis entre homens e mulheres, implicando a reclusão das mulheres na esfera doméstica, correspondia a um estádio mais avançado de civilização. Como podemos ver, uma posição muito consentânea com as propostas anti-sufragistas que consideravam que o voto seria mais um fardo para as mulheres e que por isso deviam rejeitar esse «presente envenenado».

Hugo Munsterberg (1863-1916), psicólogo da Universidade de Harvard, defendia nos seus escritos que «o movimento das mulheres» causaria o suicídio da raça, por minar a atracção pelo casamento, a feminização da alta cultura, e por tornar as mulheres, «patologicamente tensas», mães inadequadas.

Sobre a neurastenia, uma doença nervosa diagnosticada e identificada no século XIX caracterizada por sintomas vários tais como fadiga extrema, irritabilidade e dificuldade de concentração, a interpretação que os médicos lhe davam não podia ser mais favorável à separação das esferas e respectivos papeis. Nas mulheres, a doença seria provocada por actividade social intensa e pelo desejo (inadequado à sua natureza) de quererem competir com os homens; tal ambição arruinaria a sua saúde e o remédio consistiria no retorno à tranquilidade do lar doméstico[1]; nos homens as coisas passavam-se exactamente ao contrário, a doença seria provocada por excesso de trabalho intelectual e o remédio aconselhado era o exercício físico para «remasculinizar o eu». Deste modo, também a interpretação desta doença e o tratamento preconizado acabava por funcionar como um mecanismo de reforço dos papéis e das actividades consideradas apropriadas respectivamente para homens e mulheres.

Claro que, como não podia deixar de ser, as próprias mulheres colaboravam com os seus «benfeitores» masculinos e por isso não surpreende que Mary K. Sedgwick, publicasse no Gunton’s Magazine um artigo intitulado «Some scientific aspects of the woman suffrage question» que funcionava como autêntica propaganda «científica» na campanha contra o sufrágio feminino.
Resumindo, podemos dizer que a ciência da época proclamava a natural inferioridade das mulheres que precisavam ser protegidas de si mesmas, contra a ambição de desempenharem papéis masculinos; procurava aterrorizá-las com o risco da masculinização, isto é, com a perda dos traços da «verdadeira mulher». Nada podia ser mais conveniente para manter o status quo; e, mais uma vez, um número muito significativo de mulheres engoliu a pílula dourada que tão generosamente lhe ofereciam.

[1] Esta famosa «cura» para a neurastenia das mulheres ficou documentada num conto famoso de Charlotte Perkins Gilman, «The Yellow Paper» publicado em 1892 no The New England Magazine que descreve a situação vivida por uma mulher da classe alta que, diagnosticada com a doença, foi confinada ao quarto de uma casa de verão alugada pelo marido com paredes forradas a papel amarelo.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Anti-feminismo e religião estabelecida

Sempre existiram, e ainda hoje existem, mecanismos ideológicos extremamente poderosos, contra os quais é muito difícil lutar, que alienam completamente as mulheres e não permitem que se libertem da opressão, porque elas próprias interiorizaram os valores que se encontram ao serviço dessa mesma opressão. De entre estes valores, encontram-se os valores religiosos que, infelizmente, nem sempre são tão puros como se proclama e que, manipulados com habilidade e oportunidade, podem justificar – e de facto justificaram, entre outras coisas, a supremacia masculina e a obediência das mulheres. Foi o que aconteceu nos Estados Unidos com o movimento anti-feminista que teve, desde os seus primórdios, o aval e o incentivo da religião estabelecida.

As anti-feministas norte-americanas uniram-se e organizaram-se para lutar contra a concessão do direito de voto às mulheres e contaram com o apoio inestimável de inúmeros ministros religiosos que, pela sua posição social e pelo prestígio de que gozavam junto das populações crentes, exerciam enorme influência; assim, a partir do púlpito podiam diabolizar as feministas e exigir das mulheres que assistiam aos cultos o respeito pelo que entendiam ser os ensinamentos cristãos. Provavelmente isso explica em grande parte a resistência contra a aprovação de legislação progressista que tornasse o sufrágio realmente universal. Lembremos que os negros, do sexo masculino, conseguiram o voto mais de meio século antes das mulheres e lembremos também que isso aconteceu porque muitas mulheres convenceram-se não só que ele não era importante como até poderia ser-lhes desvantajoso e contrariar o papel que deveriam desempenhar na sociedade; e as igrejas que essas mulheres frequentavam assiduamente desempenharam a sua quota-parte nesse seu convencimento.

Os ministros e guardiões da fé e dos bons costumes, intermediários e auto-nomeados intérpretes da vontade divina, empunharam as Escrituras para mostrar às mulheres o que não deveriam querer fazer: não deveriam querer emancipar-se da tutela dos homens porque tal atitude, que rotulavam de egoísta e irresponsável, constituía um autêntico desafio ao Plano Divino. As mulheres, de acordo com o mesmo plano, que o apóstolo Paulo tão bem tinha defendido, eram fracas, não só física como moralmente, como o Génesis provara: tinha sido uma mulher a responsável pela expulsão do Paraíso e pelo subsequente sofrimento humano e seria de esperar que mulheres a quem fosse concedido o direito de voto só o saberiam usar de forma corrupta e arbitrária. Fraqueza intelectual e fraqueza moral, portanto, aconselhavam a que não se cometesse o erro de permitir que as mulheres se emancipassem dos homens; pois estes, por contraponto, seriam inteligentes e capazes de rectidão moral. Numa altura em que as mulheres reivindicavam «direitos naturais ao sufrágio», as Igrejas, pela voz dos seus ministros e teólogos de serviço, responderam com a «natural subordinação das mulheres».

A partir desta base ideológica, absorvida acriticamente por mulheres cujo único alimento cultural era a fé religiosa, tornava-se mais fácil dividir as mulheres e levá-las a lutarem contra os seus próprios interesses, precisamente porque essa base ideológica negava que esses fossem os seus interesses. Os seus interesses seriam obedecer à vontade divina, e Deus, pelo menos assim o proclamavam os seus ministros, queria que elas fossem obedientes aos seus maridos e que os deixassem zelar na esfera pública por aquilo que lhes convinha, tomando as respectivas decisões.
Deste modo, a religião instituída deu uma ajuda de peso ao movimento anti-feminista e, ao mesmo tempo, perante uma população maioritariamente religiosa, colocou as feministas numa posição extremamente incómoda como se elas fossem o inimigo público a abater já que verdadeiramente o que elas quereriam, dizia-se, era atacar a religião e as crenças mais queridas e reconfortantes das pessoas. Ora o facto é que as feministas não queriam nem querem atacar as crenças religiosas das pessoas; ao contrário, estas (crenças religiosas) é que muitas vezes se mostram fanática e intolerantemente incompatíveis com os princípios de justiça e de equidade. Se querer ter o direito de voto e de participação na vida pública contraria os ensinamentos da Bíblia, então tanto pior para a Bíblia, pois se trata de um elementar direito de justiça e eu não posso prescindir dele sob pena de me degradar enquanto pessoa. Se alguém ainda, invocando a história mítica do Génesis, acrescenta que eu, mulher, não devo poder votar porque sou descendente da maléfica Eva e por isso um ser degradado e inferior, então tanto pior para a história mítica!

O problema tem de ser equacionado de outra maneira. Não é o feminismo que está contra a religião; é a religião, ou a utilização que dela se faz, que está contra o feminismo e como para mim o feminismo é uma questão de elementar justiça, é uma questão de lutar contra as injustiças de que as mulheres têm sido alvo pelo facto de serem mulheres, concluo que a religião ou a utilização que dela se faz, afinal apesar de tantas proclamações pomposas não está preocupada com a justiça; será que delega a questão para o juízo final? Bem, pode ser, mas eu não pretendo deixar a questão em mãos alheias e muito menos para tão tarde!

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Maternidade - opressão ou poder?

Afirmar que a maternidade funcionou através dos tempos como uma estrutura opressiva não me parece que possa constituir pomo de discórdia. De facto, que outro nome haveremos de dar a uma capacidade reprodutiva que a mulher não controlava minimamente e que lhe impunha, independentemente da sua vontade e até mesmo contra a sua vontade, períodos sucessivos e esgotantes de gravidez, partos em que com frequência a sua própria vida era colocada em risco e prolongados e cansativos períodos de aleitamento?
Se alguém defende que foi Deus quem dispôs as coisas dessa maneira, só pode entender tal arranjo como praga ou castigo - aliás a leitura que o primeiro livro da Bíblia relatou, em apêndice ao mito do pecado original. Se dispensarmos Deus e nos ativermos à natureza, a conclusão que se impõe é que esta afinal não é essa maravilha que se apregoa pois exigiu o sacrifício e a anulação do indivíduo a favor da preservação da espécie.

De qualquer modo, no contexto em que as coisas ocorreram, não é de estranhar que os homens, ainda por cima fisicamente mais fortes, se tenham aproveitado da vulnerabilidade da mulheres para as dominar e colocar ao seu serviço, é até muito natural, o que obviamente não quer dizer que seja justo, nem tão pouco permite concluir, como pretende, por exemplo, a sociobiologia do comportamento humano, que as mulheres afinal até gostam, ou gostavam, de ser dominadas, como se esse comportamento de submissão fosse instintivo e natural.
Para provar que o comportamento de submissão das mulheres não decorreu de instinto ou de autêntico consentimento basta reflectirmos sobre os mecanismos ideológicos a que as sociedades tiveram de recorrer para o assegurar, a começar pelas religiões patriarcais e a terminar nas próprias pesquisas científicas que - e a história da ciência documenta-o, seleccionavam os dados e os interpretavam de acordo com as crenças estabelecidas acerca da natureza das mulheres. Todos esses instrumentos ideológicos, através do que se designa hoje por violência simbólica, procuravam assegurar que as mulheres não abandonassem o seu «lugar natural», interiorizassem os valores dominantes nessas sociedades e aceitassem ser reduzidas ao seu sexo e à função natural da maternidade que as definia e, portanto, as confinava e limitava.

Reduzida à função reprodutiva, que nunca foi especialmente valorizada – a sacralização da maternidade é um fenómeno relativamente recente que funcionou também como um mecanismo para calar meninas recalcitrantes, a mulher foi excluída do processo produtivo que ficou a cargo dos homens (embora seja bom lembrar que as mulheres ao longo do processo histórico não se limitaram a gerar e a criar filh@s, mas participaram em muitos sectores da produção de bens só que essa participação e o trabalho que desempenhavam era socialmente desvalorizado, não porque não fosse importante, mas porque era desempenhado por mulheres e elas … não eram muito importantes! Aliás, esse trabalho, que não era pago nem obedecia a horários, incluía-se, se quisermos falar com maior precisão, nos moldes do trabalho de servos, autêntica escravidão doméstica, ou seja a mulher paria, tratava das crianças, trabalhava arduamente em casa e em hortas doméstica, produzia bens mas não tinha nada de seu, nem tão pouco gozava de liberdade.)

Excluída do processo considerado socialmente produtivo, desvalorizada na sua qualidade de produtora de bens de consumo imediato, restava-lhe a tarefa da reprodução; mas a reprodução era vista como algo natural, algo que também ocorria com os animais, ao passo que a produção era considerada um processo cultural, algo que distanciava o ser humano da esfera da animalidade. Entre a natureza e a cultura era esta última a valorizada: as mulheres ficavam confinadas à natureza, os homens criavam cultura, transcendiam a sua condição animal e afirmavam-se como sujeitos.

Nos nossos dias, as coisas estão a mudar graças à existência de condições objectivas que permitem que as mulheres controlem a sua capacidade reprodutiva. Por isso, curiosamente, a sociedade começa a dar valor à «produção» de crianças, no preciso momento em que percebe que as mulheres, sobretudo nos países mais evoluídos e nos estratos sociais mais esclarecidos, dão sinais de escassa disponibilidade para continuarem a investir em força na perpetuação da espécie. Como as mulheres podem não engravidar, se assim o decidirem, e de facto, como mostram as estatísticas, muitas decidiram reduzir drasticamente o número de filhos que se encontram dispostas a criar, os meios de comunicação social investem em estratégias que visam remediar os estragos: (1) procuram «revitalizar» o designado instinto maternal, que pelos vistos, coisa estranha para um instinto, anda bastante adormecido; (2) insistem na glamorização da gravidez, manipulando o desejo - o que é sempre um mecanismo económico para se conseguir o que se pretende, como se pode constatar pelas inúmeras revistas que nas capas ou páginas centrais apresentam mulheres grávidas, sempre belas e charmosas, de preferência famosas e conhecidas do grande público; (3) e não se cansam de enaltecer as delícias da maternidade, insistindo em como esta é indispensável para a realização das mulheres, tentando passar a ideia de que uma mulher sem filhos é uma aberração da natureza.

Apesar dos esforços da comunicação social para retardar a mudança, o novo contexto, parece ser finalmente favorável às mulheres. Não pretendo fazer futurologia mas pode imaginar-se que a sociedade vai ter de pensar numa forma qualquer de compensar as mulheres que, sacrificando interesses pessoais, se disponham a ter filhos, independentemente da felicidade que possam sentir face a tal situação, estabelecendo garantias de recebimento integral de salários e de promoção na carreira que não poderá ser prejudicada, bem pelo contrário, pela função maternal, bem como a obtenção de outras regalias sociais, encarando a reprodução como um trabalho e um trabalho que importa valorizar sob pena de não haver «concorrentes ao lugar». A nível de apoios familiares, impõe-se estruturar um sistema de creches de boa qualidade onde as mães e os pais possam deixar as crianças num ambiente que favoreça o seu desenvolvimento e socialização. E isto é apenas ser realista e não implica de modo algum que as mulheres e os homens não amem os seus filhos e filhas e não procurem dar-lhes o melhor.

Eu sei que esta postura pode ser sentida por muitas mulheres como uma espécie de blasfémia, tão intoxicadas estão pela ideologia da sacralização da maternidade; de certo que as anti-feministas me atiram às feras, como se pode deduzir da proclamação xaroposa do IWF :

«Colocar um preço no valor de uma mãe é não perceber do que estamos a falar. As mulheres desempenham estes deveres porque amam as suas famílias. As mães não são prestadoras de cuidados diários a 14 dólares por hora – são mães amorosas impelidas a cuidar desses seres frágeis que lhes são mais preciosos do que qualquer quantia em dinheiro. Servir como psicólogas dos seus filhos e administradoras do seu lar não é um trabalho – é a essência da vida. A sua compensação não é medida em dólares, mas na construção de uma vida que se ama.»

Como se vê uma retórica de grande qualidade, mas postas as coisas apenas cruamente, um simples prémio de consolação para as mulheres que, abdicando dos seus interesses próprios, ficam numa situação de grande vulnerabilidade tanto no presente, como sobretudo no futuro. Quando as suas crianças desertarem do ninho e quando elas próprias nos «quarenta» forem trocadas pelos seus maridos por duas de «vinte», como chocarreiramente ouvimos dizer, aí então vão perceber que houve coisas que lhes disseram, mas houve outras muito importantes que lhes foram escamoteadas e, de entre estas, parece-me que a fundamental é que qualquer ser humano homem ou mulher precisa de se perceber como um indivíduo que colabora, respeita e ama os outros, mas nem pode parasitar os outros nem deve deixar que os outros o parasitem.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Maternidade intensiva – um ideal que não serve os interesses das mulheres

«Maternidade intensiva» é o conceito utilizado pelas anti-feministas para designar o ideal de maternidade que defendem: um ideal em que a mãe se dedica única e exclusivamente à família e aos filhos, aos quais sacrifica generosamente os seus interesses pessoais e profissionais, cumprindo assim o que entendem ser a sua verdadeira vocação e destino.

Como hoje, um número cada vez maior de mulheres não se confina ao papel de esposa e de mãe e integra a força de trabalho com todas as dificuldades e ansiedades que isso pressupõe, as anti-feministas não perdem a oportunidade para culpar as feministas, atribuindo-lhes o terem desprestigiado a função maternal e criado condições para que mulheres, que são simultaneamente mães e trabalhadoras, não se sintam felizes. Para explicar esta tensão, que de facto pode existir, as anti-feministas nunca invocam a escassez de apoios familiares, a negligência de maridos ausentes, ou a estruturação de um mundo laboral que continua a funcionar em moldes masculinos e a ignorar as novas dinâmicas criadas pela presença das mulheres. Para elas, pelo menos idealmente, a resolução de todos os problemas resultaria do retorno da mulher ao lar.

Claro que as anti-feministas que defendem este ideal de maternidade intensiva reconhecem que se trata de um ideal e na sua própria vida ou nem sequer têm marido e filhos, como acontece por exemplo com Ann Coulter, estrela mediática do movimento, ou podem contar com empregadas diligentes e governantas de reconhecida competência que tomam conta dos rebentos e da casa enquanto elas próprias brilham na esfera pública, caso por exemplo da carismática Phyllis Schlafly que teve seis crianças, o que não perturbou as suas constantes intervenções na vida pública nem o seu activismo contra o movimento feminista. E, já que estou a referir contradições, também não me parece muito verosímil que estas senhoras insistam com as suas próprias empregadas domésticas para que fiquem em casa a cuidar de maridos e filhos ou sequer que as convidem a trazer as suas crianças para as casas onde servem, até porque normalmente não são muito entusiastas da mistura social.

Vejamos agora os pressupostos do ideal de «maternidade intensiva». Em primeiro lugar parte do princípio de que os papéis de homens e de mulheres são radicalmente diferentes, não permutáveis e têm suporte em características biológicas também distintas. Aceita ainda que a mulher se define pelo papel de esposa e de mãe e presume que ela se sente verdadeiramente feliz e realizada no exercício deste papel.

Não contentes com estes princípios, as anti-feministas ainda invocam Deus e os seus planos, para manter as coisas no seu «devido lugar»; ora o beneplácito divino dá sempre muito jeito para punir as transgressoras e para que elas internalizem sentimentos de culpa e de angústia; pelo caminho, para melhor atingirem o objectivo ainda transformam as feministas em bodes expiatórios:

«O movimento feminista destruiu aquilo que acreditamos ser a família tradicional – um homem casado com uma mulher, entregando-se aos papéis que, sentimos, Deus os incumbiu de cumprirem no lar. Acreditamos que o que Deus dispôs para homens e mulheres cria o melhor ambiente para as crianças, no qual ambos, mãe e pai, são iguais em casa, embora com diferentes papéis.» (Presidente Pate do CWA, citado in Righting Feminism, p. 99.)

Parece-me que neste ideal de maternidade há um aspecto verdadeiramente perturbador: ele implica, como disse acima, que se defina e confine a mulher ao papel de esposa e sobretudo de mãe. Mas será que, restringindo-se a este papel, a mulher consegue transcender a sua função natural e biológica e realizar-se como ser humano de pleno direito? Penso que não. Quando se reflecte sobre a função reprodutiva e sobre a função produtiva dos seres humanos, é esta última que se salienta, isto é, não é a função reprodutiva, mas sim a produtiva que dignifica o ser humano, que lhe confere valor, no sentido de que este, através do trabalho, transcende a sua condição animal e assume-se como sujeito da sua própria história. Ora negar à mulher o acesso à esfera produtiva confinando-à função reprodutiva é negar-lhe a possibilidade de transcender a sua condição natural e de se afirmar como sujeito da sua própria história.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Anti-feministas e maternidade intensiva

Antes de mais, convém afirmar que o que vou colocar em questão não é a natureza gratificante e enriquecedora da experiencia da maternidade, nem tão pouco pôr em dúvida o amor das mulheres pelas suas crianças. O que aqui irei questionar é um ideal de maternidade, defendido pelas anti-feministas, que define e confina a mulher ao papel de esposa e de mãe. Algumas observações prévias permitirão compreender melhor as razões que explicam a necessidade que sinto de rejeitar esse ideal.

Como sabemos, a existência das sociedades humanas depende tanto da reprodução da espécie quanto da produção de bens que permitam a sua sobrevivência - é óbvio que estas duas actividades – reprodução e produção são igualmente indispensáveis; mas o facto é que, historicamente, a produção foi superiormente valorizada e, entregue aos homens, constituiu a base económica da sua supremacia, enquanto a capacidade reprodutiva das mulheres foi usada para as definir e limitar a uma existência de dependência e de subserviência. As coisas podiam ter-se passado de outra maneira, mas foi assim que aconteceram. Ficando a produção a cargo dos homens, estes garantiram na cadeia social um lugar de supremacia e de domínio; por seu lado, as mulheres, sobrecarregadas com uma função reprodutiva que não controlavam – o único meio de a controlarem seria negarem-se a ter relações sexuais com os homens, o que estava completamente fora do seu alcance, atendendo até à relação de poder estabelecida – não tiveram outra opção que não fosse a de aceitarem a sua condição como uma fatalidade e um destino.

Só muito recentemente as condições objectivas de existência das mulheres se alteraram e permitiram a sua entrada na força de trabalho bem como o controlo da natalidade; com este último instrumento ao seu alcance, as mulheres, pelo menos nos países democráticos, podem optar por ter ou não filhos e podem decidir quando e quantas crianças vão gerar e criar. E os factos falam por si, o número médio de nascimentos decresceu vertiginosamente o que só prova que não foi preciso grande incentivo para as mulheres tomarem nas suas mãos o controlo da sua capacidade reprodutiva tão logo encontraram meios seguros para o fazer.

Mas eis que, a sociedade, ainda de supremacia masculina, pela voz de mulheres que em assuntos desta natureza «parecem» mais credíveis do que as dos homens, resolveu entrar em jogo para tentar «boicotar» esta notável conquista, tendo ao seu dispor para atingir tal objectivo a conivência e a cumplicidade dos meios de comunicação social - rádios, televisões, revistas dirigidas a publico predominantemente feminino. È aqui que entram as anti-feministas e a sua retórica inflamada que visa sacralizar a maternidade e incentivar a «maternidade intensiva», tentando convencer as mulheres de que a sua função na vida é dar filhos à nação.

A estratégia de sacralização da maternidade posta em prática pelas anti-feministas revela bastante potencial e muitas mulheres deixam-se seduzir por ela. De facto, em relação à maternidade muitas mulheres sentem que, dados os arranjos sociais existentes, ela pode prejudicar a sua carreira profissional e o seu projecto de vida, sobretudo no caso de uma gravidez indesejada, mas por outro também sentem que amam esse ser que se dispõem a gerar e a proteger; encontram-se assim numa posição extremamente vulnerável e tornam-se presas fácies de uma retórica que as exalta e pretende dignificar e é tantas vezes tão ínfimo o quinhão que lhes coube em sorte que este aparente «empoderamento» surge como algo que não se podem permitir negligenciar. Claro que as anti-feministas não dormem em serviço e de brinde apresentam a exigência da responsabilidade da mulher para com o feto que carrega no ventre exigindo que ela sacrifique os seus interesses pessoais aos «pretensos» interesses do feto, advogando energicamente a rejeição da interrupção voluntaria da gravidez, vulgo, aborto.

As anti-feministas insistem ainda no ideal de «maternidade intensiva» em que a mulher abandona a sua carreira para se dedicar em exclusivo ao cuidado dos filhos, defendendo que é este o ideal que melhor corresponde aos interesses da criança e considerando que estes devem prevalecer sobre os interesses da mãe, ou melhor, considerando que o interesse da mãe, da verdadeira mulher - e mais uma vez entra este chavão, é o interesse da sua criança, esquecendo que, mais provavelmente, a maternidade intensiva pode até nem ser o que melhor corresponde ao interesse da criança, mas é com certeza o que melhor corresponde aos interesses do pai da criança. E isto porque sacrificar a mãe, pensando exclusivamente no filho, não será bom nem para a mãe nem para o filho, e a colocação das crianças em boas creches onde o convívio com outras crianças torna mais enriquecedor o ambiente em que vão crescer e socializar-se pode ser uma solução alternativa bem mais saudável. Claro que um arranjo social deste tipo implica também o envolvimento do pai, esse grande ausente do cuidado com a criança, nas tarefas que até então só à mãe competem.

A ideia das anti-feministas é diferenciar bem os papéis, confinar a mulher ao papel de mãe e de esposa, ideia esta bem antiga! Mas quem disse que elas são modernas? Apenas vestem outras roupagens, mas no fundo, se pudessem, regressavam ao glorioso passado dos homens que florescem na esfera pública e das mulheres que, na sombra da esfera privada – de onde nunca deveriam ter saído, preparam o repouso do guerreiro. E a questão da maternidade com a sua ambivalência presta-se extraordinariamente bem para porem em curso a sua agenda sem abrirem muito o jogo.

Ao invés de lutarem por transformações sociais a nível do local de trabalho ou da organização da vida familiar, as anti-feministas são exímias em deitarem areia na engrenagem a fim de boicotarem a laboração! Creches de boa qualidade para as mães deixarem os seus filhos sem a angústia que muitas vezes experimentam ao sentirem que eles não ficam nas melhores condições? Não, nem pensar em implementar um sistema nacional de creches, isso seria gastar indevidamente o dinheiro dos contribuintes e atribuir ao Estado uma tarefa que as famílias não devem alienar até porque o Estado pode inculcar nas crianças valores que as famílias repudiem. Férias para o pai a quando do nascimento de um filho, para poder também cuidar dele e sentir o prazer do contacto direito com a nova vida que vai amar e aprender a proteger? Não é importante, pensam, já que é a mãe quem que está mais capacitada para cuidar da criança!

O que importa verdadeiramente às anti-feministas é incentivar o retorno das mulheres ao lar doméstico, pelo menos quando os filhos são pequenos, sacrificando carreira e futuro profissional e mantendo a dependência em relação aos seus maridos que assim se verão obrigados a prover às suas necessidades e dos filhos. Mas esquecem que este modelo foi aquele que existiu durante séculos e nem por isso favoreceu a situação das mulheres, bem pelo contrário. Além de que o tempo não volta para trás, e qualquer mulher minimamente inteligente sabe que se não cuidar do seu presente vai atraiçoar o seu futuro, experiência com que muitas já se confrontaram quando maridos na meia-idade resolveram trocá-las por mulheres troféu deixando-as entregues às doces (agora amargas) recordações de uma maternidade plena e intensivamente vivida, mas também na penúria.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Anti-feministas – «His master voice»

As anti-feministas, como podemos deduzir do testemunho de Seriah Rein da CWA, não consideram necessária a representação das mulheres nos órgãos do poder político nos quais se tomam decisões que a tod@s dizem respeito:

«Eu penso que não é necessário ter cancro para ser capaz de articular como preveni-lo, como lidar com ele e como o tratar. Não acredito em quotas, ponto final. Conheço alguns homens que conseguem expressar as preocupações das mulheres melhor do que muitas mulheres … Não penso que deva haver uma certa percentagem de mulheres só pelo facto de serem mulheres. Penso que foi um mau serviço que fizemos aos negros através da acção afirmativa … Sinto o mesmo acerca da representação das mulheres no Congresso. »(Citado in Righting Feminism)

Seriah Rein, ao desvalorizar completamente a participação das mulheres na política através da eleição de representantes do sexo feminino, apenas está a ser coerente com as anti-feministas do início do século XX que se organizaram para fazer oposição à concessão do voto para as mulheres. Ao argumentar que alguns homens até conseguem defender melhor os interesses das mulheres do que as próprias mulheres, Rein está a personificar a velha mentalidade paternalista que encara as mulheres como seres menores cuja melhor opção é colocarem-se sob a protecção dos homens e desistirem de qualquer intervenção directa no mundo, contentando-se com a influência que possam ter no seio da família, vivendo por interpostas pessoas, sejam o marido ou os filhos, apagando-se e desistindo de protagonismo na esfera pública. Claro que ela própria fugiu a esse padrão, mas pode sempre invocar que apenas está a cumprir uma missão e que as afirmações que profere, porque são feitas por uma mulher, tem muito mais credibilidade do que se fossem proferidas por homens; mas este tipo de argumentação é um pau de dois bicos pois também se presta à interpretação de que afinal ela e outras como ela são simples correias de transmissão dos interesses dos homens que são apresentados como coincidentes com os interesses das mulheres, uma espécie de «his master voice».

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Uma estrela no firmamento conservador: Ann Coulter, a barbie da direita

Ann Coulter (1961) é advogada e jornalista norte-americana, muito popular, sobretudo junto do eleitorado de direita, e conhecida pelas suas tiradas politicamente incorrectas. Escreveu vários livros, alguns dos quais se revelaram verdadeiros best-sellers e é colunista em diversos periódicos.
Embora lhe sejam conhecidos ex-namorados, ligados ao jornalismo e à direita, Coulter não casou nem tem filhos, mas é membro de uma igreja evangélica presbiteriana dirigida pelo pastor Timothy J. Keller.
Entre outras coisas, nas suas aparições públicas na rádio, na televisão e em palestras, Coulter ataca a teoria evolucionista, os homossexuais e os muçulmanos. O seu ódio aos democratas e às feministas é declarado e peçonhento.

Sobre as mulheres conhecem-se algumas tiradas suas que são verdadeiras pérolas de misoginia, embora, obviamente, ela negue esta interpretação; vejamos uma das mais badaladas:
"Eu acho que as mulheres deviam ter armas mas não deviam votar... as mulheres não têm capacidade para compreender como é que o dinheiro é ganho. Elas têm muitas ideias de como o gastar. E quando vão votar, querem sempre mais dinheiro para educação, mais dinheiro para cuidados infantis, mais dinheiro para creches."
Ann Coulter, Politically Incorrect, Fevereiro, 26, 2001

Coulter, com a maior impunidade, passa um atestado de menoridade mental às mulheres, o que é antes de mais uma atitude insultuosa que nem é preciso rebater, repetindo o lugar comum de que as mulheres só sabem gastar o dinheiro, não sabem ganhá-lo; aliás, este lugar-comum decorreu do facto de durante muito tempo as mulheres terem vivido na dependência económica dos maridos e precisarem do dinheiro que eles lhes davam, se calhar muitas vezes contra vontade, para se ataviarem como a sociedade exigia que fizessem, isto é, para se preocuparem com vestidos, cremes, sapatos e outros ornamentos. Ora é lamentável que em pleno século XXI uma mulher seja tão ignorante a ponto de não perceber este condicionalismo da vida das mulheres, responsável pelo comportamento que ela própria parece reprovar.
Também é lamentável que ela tenha uma percepção negativa da exigência de mais dinheiro do Estado para a Educação, cuidados de saúde com as crianças e creches, ou melhor até se percebe, mas custa a aceitar.

Posto isto, o ódio que destila contra as feministas é mais do que compreensível:

«A verdadeira razão porque eu odeio e detesto as feministas é que as verdadeiras feministas, e seu núcleo duro, as grandes pensadoras do movimento … têm estado na linha da frente da destruição das verdadeiras instituições que protegem as mulheres: a monogamia, o casamento, a castidade e o cavalheirismo…»

Precisamente Coulter cita uma instituição que ou leva uma grande volta ( e dá-me ideia de que já está a levar) ou então está condenada a desaparecer que é o casamento monogâmico.
Como sabemos, a monogamia foi durante séculos uma fraude, só existiu para as mulheres.
Quanto ao casamento propriamente dito foi uma instituição extremamente opressiva e só as reivindicações feministas contribuíram para alterar os termos em que o contrato de casamento era vazado.
Quanto à castidade, em que é que a dama estará a pensar, nas mulheres ou nas mulheres e nos homens? Ou ela não saberá que a castidade das mulheres foi a exigência dos homens enquanto a si mesmos se davam licença para se envolverem com outras parceiras sexuais?
Já o cavalheirismo, ou seja o respeito e as mesuras dos homens dedicadas às mulheres que «sabem ocupar o seu lugar» exige mais do que dá, por isso, passamos bem sem ele desde que os homens nos respeitem como suas iguais, e igualdade não quer dizer identidade, quer dizer partilha de bens e de poder para determinarmos a nossa própria vida.

A sensação com que se fica é que Coulter é espertalhona, mas ignorante e dotada de uma tremenda má-fé. Antifeminista que baste, faz os fretes à direita conservadora e reaccionária e, não se sabe bem como, pretende fazer passar-se por amiga das mulheres. É caso para dizer: com amigas destas não precisamos de inimigas.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Mulheres que não querem ter direito de voto!!

A NAOWS - National Association Opposed Woman Suffrage (Associação nacional de mulheres que se opõem ao voto para a mulher) apresentou o seguinte manifesto no qual expõe as razões por que o movimento se opõe à concessão do direito de voto às mulheres:

Porque nos opomos ao voto para as mulheres :

Porque o sufrágio não é um privilégio a ser desfrutado, mas, imposto às mulheres, torna-se um dever a ser cumprido.

Porque acreditamos que os homens de Estado são capazes de conduzir o governo em benefício de ambos, homens e mulheres, sendo os respectivos interesses, genericamente falando, os mesmos.

Porque as mulheres não estão a ser objecto de qualquer injustiça que possa ser rectificada pela concessão do voto.

Porque a igualdade política eventualmente privará as mulheres de alguns privilégios que as leis feitas pelos homens lhes concedem.

Porque o voto nas mãos dos homens tem provado não ser a cura para os males existentes e não há razão para acreditar que será mais efectivo nas mãos das mulheres. Não o tem sido nos Estados em que existe. No Colorado depois de um teste de 22 anos o resultado não mostra qualquer ganho nos costumes públicos e políticos sobre os estados em que o sufrágio é masculino.

Porque a igualdade no carácter não implica similitude na função e os deveres e a vida de homens e mulheres devem ser diferentes no Estado como no lar. O serviço do homem ao Estado é contrabalançado pelo serviço da mulher no lar.

Porque as mulheres mesmo fora da política são livres de apelar a qualquer partido em matéria de educação, caridade e reforma, acreditamos que seria desvantajoso para o estado e para as mulheres colocar esta metade, não participante da sociedade, na política.

Porque o movimento do sufrágio da mulher é um passo atrás no progresso da civilização na medida em que tenta apagar a diferenciação natural de função e produzir identidade em vez de divisão do trabalho.

The National Association Opposed Woman Suffrage (New York)

Analisemos a força destes argumentos:
Começa por se assumir o pressuposto de que o voto não é um direito, mas um dever. Mas este pressuposto não resiste ao escrutínio crítico, porque o voto é acima de tudo o direito que as pessoas têm de influenciar a política - na qual se tomam decisões que a todas as pessoas dizem respeito; se as decisões políticas dizem respeito a todas as pessoas e não apenas àquelas que governam então é lógico e moralmente defensável que todas usufruam desse instrumento que é o voto para elegerem quem as represente. Claro que se as pessoas têm direito de voto então têm também o dever de votar, mas a dimensão do voto enquanto direito é mais forte que a dimensão enquanto dever, tanto assim que na maior parte dos países o não cumprimento desse dever pode ser sancionado moralmente mas não o é pela força das leis. Aqui omite-se ardilosamente esta questão para se convencer a mulher que o voto será mais uma obrigação que ela terá de cumprir.

Claro que partir do princípio que os homens legislarão levando em conta os interesses das mulheres que, genericamente falando são os mesmos dos homens, é partir de um princípio que nem a experiência corrobora nem a lógica autoriza: sendo os homens homens é apenas natural que defendam os arranjos sociais que melhor lhes convém e foi assim que as coisas se passaram até ao momento em que as mulheres começaram a ter voz para reclamar a participação no poder político.

Claro que as mulheres estavam (e ainda estão) a ser objecto de injustiça e desvalorizar o voto enquanto instrumento de correcção de injustiças não é mais do que desvalorizar as práticas democráticas.

Evoca-se a possibilidade da a igualdade política vir a retirar privilégios às mulheres, mas como não se explica que privilégios são esses nem como tal processo ocorreria, parece que apenas se pretende atemorizar as mulheres.

Também neste ponto se desvaloriza o poder do voto enquanto instrumento, não se percebendo bem o que é que se está a sugerir como alternativa, talvez um despotismo qualquer ou um totalitarismo «que ponha as coisas nos eixos», tão ao gosto dos partidos extremistas.

Igualdade de carácter versus desigualdade de funções, a velha teoria da complementaridade na diferença que no fundo acaba por revelar que insistir nas diferenças que separam os sexos leva sempre a considerar um superior ao outro. Fala-se na igualdade na diferença apenas para tornar mais palatável a diferença e esconder a realidade do domínio de um sexo sobre o outro que está nos antípodas da igualdade.

O direito de voto para as mulheres não é um progresso é um retrocesso porque vai contribuir para esbater as diferenças entre mulheres e homens, vai aproximá-los em vez de os manter em esferas separadas. Mas qual é a vantagem que as mulheres tiram dessa separação? Que privilégios é que perdem? Não se demonstrando este ponto, o argumento não passa de uma proclamação pomposa.

Resumindo, os argumentos contra a concessão do voto para as mulheres não são consistentes nem convincentes, a sua fragilidade é extrema como acontece frequentemente nos discursos da direita, por isso é que a direita aposta na retórica dos slogans para esconder a pobreza dos raciocínios. Os princípios subjacentes a este discurso anti-feminista implicam a desvalorização da democracia e do voto enquanto instrumento de governo de um país; a separação entre esfera pública e privada, reservando a primeira para os homens e a segunda para as mulheres; e a defesa da teoria da complementaridade entre os sexos.
Quanto ao primeiro aspecto, reconhecendo-se os defeitos da democracia, ocorre perguntar qual a alternativa a esta forma de governo; também se pode perguntar a quem é que interessa manter a separação rígida entre esfera pública e privada com a separação de funções e papéis; por último, a teoria da complementaridade entre os sexos só se tem revelado como um meio de perpetuar a injustiça.

Portanto, atenção:
Se você também enche a boca com essa de que as mulheres são iguais, mas diferentes dos homens, então provavelmente você vai pactuar com a tendência para construir a diferença em termos não de igualdade mas de hierarquia. Se não quer correr esse risco, limite-se a dizer: as mulheres são iguais aos homens e isso é que importa, as diferenças são secundárias, são pessoas com as mesmas necessidades de realização e às quais devem ser concedidos os mesmo direitos fundamentais enquanto seres humanos.