Afirmar que a maternidade funcionou através dos tempos como uma estrutura opressiva não me parece que possa constituir pomo de discórdia. De facto, que outro nome haveremos de dar a uma capacidade reprodutiva que a mulher não controlava minimamente e que lhe impunha, independentemente da sua vontade e até mesmo contra a sua vontade, períodos sucessivos e esgotantes de gravidez, partos em que com frequência a sua própria vida era colocada em risco e prolongados e cansativos períodos de aleitamento?
Se alguém defende que foi Deus quem dispôs as coisas dessa maneira, só pode entender tal arranjo como praga ou castigo - aliás a leitura que o primeiro livro da Bíblia relatou, em apêndice ao mito do pecado original. Se dispensarmos Deus e nos ativermos à natureza, a conclusão que se impõe é que esta afinal não é essa maravilha que se apregoa pois exigiu o sacrifício e a anulação do indivíduo a favor da preservação da espécie.
De qualquer modo, no contexto em que as coisas ocorreram, não é de estranhar que os homens, ainda por cima fisicamente mais fortes, se tenham aproveitado da vulnerabilidade da mulheres para as dominar e colocar ao seu serviço, é até muito natural, o que obviamente não quer dizer que seja justo, nem tão pouco permite concluir, como pretende, por exemplo, a sociobiologia do comportamento humano, que as mulheres afinal até gostam, ou gostavam, de ser dominadas, como se esse comportamento de submissão fosse instintivo e natural.
Para provar que o comportamento de submissão das mulheres não decorreu de instinto ou de autêntico consentimento basta reflectirmos sobre os mecanismos ideológicos a que as sociedades tiveram de recorrer para o assegurar, a começar pelas religiões patriarcais e a terminar nas próprias pesquisas científicas que - e a história da ciência documenta-o, seleccionavam os dados e os interpretavam de acordo com as crenças estabelecidas acerca da natureza das mulheres. Todos esses instrumentos ideológicos, através do que se designa hoje por violência simbólica, procuravam assegurar que as mulheres não abandonassem o seu «lugar natural», interiorizassem os valores dominantes nessas sociedades e aceitassem ser reduzidas ao seu sexo e à função natural da maternidade que as definia e, portanto, as confinava e limitava.
Reduzida à função reprodutiva, que nunca foi especialmente valorizada – a sacralização da maternidade é um fenómeno relativamente recente que funcionou também como um mecanismo para calar meninas recalcitrantes, a mulher foi excluída do processo produtivo que ficou a cargo dos homens (embora seja bom lembrar que as mulheres ao longo do processo histórico não se limitaram a gerar e a criar filh@s, mas participaram em muitos sectores da produção de bens só que essa participação e o trabalho que desempenhavam era socialmente desvalorizado, não porque não fosse importante, mas porque era desempenhado por mulheres e elas … não eram muito importantes! Aliás, esse trabalho, que não era pago nem obedecia a horários, incluía-se, se quisermos falar com maior precisão, nos moldes do trabalho de servos, autêntica escravidão doméstica, ou seja a mulher paria, tratava das crianças, trabalhava arduamente em casa e em hortas doméstica, produzia bens mas não tinha nada de seu, nem tão pouco gozava de liberdade.)
Excluída do processo considerado socialmente produtivo, desvalorizada na sua qualidade de produtora de bens de consumo imediato, restava-lhe a tarefa da reprodução; mas a reprodução era vista como algo natural, algo que também ocorria com os animais, ao passo que a produção era considerada um processo cultural, algo que distanciava o ser humano da esfera da animalidade. Entre a natureza e a cultura era esta última a valorizada: as mulheres ficavam confinadas à natureza, os homens criavam cultura, transcendiam a sua condição animal e afirmavam-se como sujeitos.
Nos nossos dias, as coisas estão a mudar graças à existência de condições objectivas que permitem que as mulheres controlem a sua capacidade reprodutiva. Por isso, curiosamente, a sociedade começa a dar valor à «produção» de crianças, no preciso momento em que percebe que as mulheres, sobretudo nos países mais evoluídos e nos estratos sociais mais esclarecidos, dão sinais de escassa disponibilidade para continuarem a investir em força na perpetuação da espécie. Como as mulheres podem não engravidar, se assim o decidirem, e de facto, como mostram as estatísticas, muitas decidiram reduzir drasticamente o número de filhos que se encontram dispostas a criar, os meios de comunicação social investem em estratégias que visam remediar os estragos: (1) procuram «revitalizar» o designado instinto maternal, que pelos vistos, coisa estranha para um instinto, anda bastante adormecido; (2) insistem na glamorização da gravidez, manipulando o desejo - o que é sempre um mecanismo económico para se conseguir o que se pretende, como se pode constatar pelas inúmeras revistas que nas capas ou páginas centrais apresentam mulheres grávidas, sempre belas e charmosas, de preferência famosas e conhecidas do grande público; (3) e não se cansam de enaltecer as delícias da maternidade, insistindo em como esta é indispensável para a realização das mulheres, tentando passar a ideia de que uma mulher sem filhos é uma aberração da natureza.
Apesar dos esforços da comunicação social para retardar a mudança, o novo contexto, parece ser finalmente favorável às mulheres. Não pretendo fazer futurologia mas pode imaginar-se que a sociedade vai ter de pensar numa forma qualquer de compensar as mulheres que, sacrificando interesses pessoais, se disponham a ter filhos, independentemente da felicidade que possam sentir face a tal situação, estabelecendo garantias de recebimento integral de salários e de promoção na carreira que não poderá ser prejudicada, bem pelo contrário, pela função maternal, bem como a obtenção de outras regalias sociais, encarando a reprodução como um trabalho e um trabalho que importa valorizar sob pena de não haver «concorrentes ao lugar». A nível de apoios familiares, impõe-se estruturar um sistema de creches de boa qualidade onde as mães e os pais possam deixar as crianças num ambiente que favoreça o seu desenvolvimento e socialização. E isto é apenas ser realista e não implica de modo algum que as mulheres e os homens não amem os seus filhos e filhas e não procurem dar-lhes o melhor.
Eu sei que esta postura pode ser sentida por muitas mulheres como uma espécie de blasfémia, tão intoxicadas estão pela ideologia da sacralização da maternidade; de certo que as anti-feministas me atiram às feras, como se pode deduzir da proclamação xaroposa do IWF :
«Colocar um preço no valor de uma mãe é não perceber do que estamos a falar. As mulheres desempenham estes deveres porque amam as suas famílias. As mães não são prestadoras de cuidados diários a 14 dólares por hora – são mães amorosas impelidas a cuidar desses seres frágeis que lhes são mais preciosos do que qualquer quantia em dinheiro. Servir como psicólogas dos seus filhos e administradoras do seu lar não é um trabalho – é a essência da vida. A sua compensação não é medida em dólares, mas na construção de uma vida que se ama.»
Como se vê uma retórica de grande qualidade, mas postas as coisas apenas cruamente, um simples prémio de consolação para as mulheres que, abdicando dos seus interesses próprios, ficam numa situação de grande vulnerabilidade tanto no presente, como sobretudo no futuro. Quando as suas crianças desertarem do ninho e quando elas próprias nos «quarenta» forem trocadas pelos seus maridos por duas de «vinte», como chocarreiramente ouvimos dizer, aí então vão perceber que houve coisas que lhes disseram, mas houve outras muito importantes que lhes foram escamoteadas e, de entre estas, parece-me que a fundamental é que qualquer ser humano homem ou mulher precisa de se perceber como um indivíduo que colabora, respeita e ama os outros, mas nem pode parasitar os outros nem deve deixar que os outros o parasitem.