No contexto da querela feminista, o termo «natural», ou melhor o conceito que lhe poderá corresponder, - e resta saber se será possível clarificar esse conceito -, tem-se revelado muito importante porque os adversários da emancipação das mulheres o utilizam como arma de arremesso sempre que escasseiam os argumentos intelectuais: uma vez estabelecido que algo é natural, por um movimento quase imperceptível para as mentes menos precavidas, deduz-se que esse algo também é desejável, derivando-se, como se diz em termos filosóficos, o dever ser do ser.
Vou aqui defender que no debate sobre a questão das mulheres é preferível deixar este termo de lado, dada a dificuldade/impossibilidade em o clarificar; e, no caso de alguém insistir em utilizá-lo, vou advogar que não é legítimo, a partir de uma qualquer pretensa natureza feminina, derivar um dever ser que se imponha como princípio normativo do comportamento das mulheres.
Frequentemente o termo «natural» surge por referência ao mundo que nos é exterior – a natureza física, que existe sem interferência do ser humano e na qual os fenómenos ocorrem de acordo com certos padrões de normalidade; neste sentido, natural é o que não é afectado pela interferência humana. Mas, mesmo no mundo natural, vai-se tornando cada vez mais difícil encontrar coisas que directa ou indirectamente não sofram influência da acção humana: os rios correm naturalmente para o mar, mas uma barragem pode bloquear o seu percurso; as alterações climáticas dos nossos dias, com o degelo que se começa a verificar nas regiões polares são tudo menos naturais, e poderíamos enumerar muitos outros exemplos.
Para além do mundo natural, existe o mundo dos comportamento humanos e aqui a primeira dificuldade com que nos deparamos quando perguntamos o que significa dizer-se que uma coisa é natural é que é impossível falar-se da natureza de qualquer coisa fazendo abstracção das condições em que essa qualquer coisa surgiu, se desenvolveu e se constituiu. De tal modo as condições são importantes que acontece muitas vezes não sabermos qual a quota-parte que lhes corresponde na existência de um qualquer ser, situação ou comportamento.
Quando falamos, por exemplo, em natureza humana, queremos com isso significar, seguindo Aristóteles, a característica ou características que distinguem os seres humanos de todos os outros seres animais. Tentamos ancorar essa natureza humana na capacidade racional que os seres humanos possuiriam e que estaria ausente nos outros animais, mas pouco mais somos capazes de dizer acerca do assunto, além de que os animais, pelo menos alguns da classe a que nós pertencemos, apresentam por vezes comportamentos que nos deixam perplexos e que parecem esbater qualquer linha de demarcação qualitativa. Dentro da espécie humana, a distinção entre uma natureza masculina e uma natureza feminina ainda torna a questão mais complicada: (1) será que, à parte diferenças sexuais e reprodutivas, homens e mulheres têm naturezas diferentes? (2) sabemos com rigor em que poderão consistir essas diferenças, no caso de existirem? (3) admitindo que sabemos, isso permitir-nos-á legislar no sentido de preconizar o que será mais conveniente para umas e para outros?
Quanto à primeira questão, penso não existirem dados suficientes que permitam uma resposta satisfatória. A segunda questão merece-me uma resposta francamente negativa porque mesmo que se admitam diferenças entre os dois sexos, essas diferenças constatadas podem ser o resultado de interferências e de condicionalismos que nada têm de natural e nelas sempre será impossível saber o que atribuir à natureza e o que atribuir ao meio. À terceira questão também respondo negativamente porque entendo que do ser não se pode derivar o dever ser: pelo facto de que alguma coisa é não se pode pretender que ela deva ser; o conceito de dever ser contem uma dimensão valorativa que não está incluída no conceito de ser. O dever ser aparece como o desejável, o apreciável, o que se entende como bom.
No caso que estamos a considerar não se pode estabelecer identidade entre o que é natural e o que é bom, porque uma coisa não é automática e necessariamente boa pelo facto de ser natural; pode simplesmente ser natural e boa em simultâneo sem que haja uma ligação causal entre a primeira e a segunda, ou pode até ser natural e má. Começando pelo mundo natural verificámos que nele existe tanto o bom como o mau e por isso não podemos estabelecer essa identificação. Quanto ao mundo Humano, parece-nos que o filósofo escocês David Hume respondeu correctamente a esta questão ao defender que ser virtuoso não é lá muito natural e ao mostrar ainda que importantes virtudes como a justiça ou a modéstia devem mais ao artifício do que à natureza no sentido de requerem a mediação do intelecto e do hábito para serem aceites como tais e para serem praticadas, tendo-lhes mesmo chamado «virtudes artificiais».
Parece-me ainda que o nosso apego atávico ao natural tem na sua origem, prevalecente e escondido no mais fundo de nós mesmo, um resquício religioso que nos faz temer o não natural como se de diabo se tratasse. Na perspectiva religiosa, a natureza e tudo quanto existe foi criado por Deus e interferir com a obra divina surge sempre com o seu quê de desacato e de transgressão. Mas, realmente, se reflectirmos um pouco, constatamos por experiência própria que deixar a natureza seguir o seu curso às vezes pode ser bom, mas outras pode ser mau, por isso é que desenvolvemos as ciências e as técnicas com as quais a procuramos alterar e melhorar.
Acresce ainda que, como referi inicialmente, o conceito de natureza tem sido manipulado por aqueles que detêm posições de supremacia e de privilégio para justificar e apresentar como boas situações que se revelam injustas e más para aqueles que têm de as suportar; foi, por exemplo, utilizado para justificar a escravatura e para justificar a submissão das mulheres em relação aos homens. Assim, por este e pelos motivos anteriormente apresentados, considero que não mais faz sentido apelar-se para a natureza quando se debate a situação das mulheres e as injustiças de que continuam a ser alvo nas mais diferentes partes do planeta e defendo ainda que em debates deste tipo se deve liminarmente rejeitar o uso de um conceito que não se revela nem necessário nem operatório.