segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Quem controla a produção e a reprodução?

A opressão das mulheres decorre de relações de poder assimétricas entre homens e mulheres em que uns se encontram numa situação de domínio e outras de submissão. Esta assimetria, que deve ter tido origem primeira e fundamental na superioridade física dos homens, foi consolidada e mantida pelo modo como a reprodução e a produção se organizaram e foi legitimada pela construção social da sexualidade e das categorias de género; para essa legitimação contribuíram a religião, a literatura, a filosofia e até as próprias ciências.
A força física foi progressivamente perdendo importância como factor determinante de uma relação de poder e hoje só em situações que a sociedade reconhece como de abuso pode revelar o seu potencial.
O sistema de produção, que até há pouco estava concentrado praticamente em exclusividade nas mãos dos homens, o que constituía um instrumento de domínio económico sobre as mulheres, começou progressivamente a integrar mulheres que hoje desempenham as mais diversas tarefas no mundo do trabalho socialmente produtivo.
A organização da reprodução que, durante milénios, obrigou as mulheres a gravidezes numerosas e extenuantes (reprodução da espécie) a que se adicionava o cuidado da prole e das tarefas domésticos (reprodução da vida social) foi, e é ainda em muitas circunstâncias, um instrumento poderoso para o controlo das mulheres pelos homens. Mas hoje as práticas anti-concepcionais e o acesso ao aborto no caso de gravidez indesejada significam que esse controlo se encontra seriamente ameaçado.
Assim, o modo de organização da produção e da reprodução foram áreas fulcrais e factores determinantes da supremacia masculina e por isso não é de estranhar que o anti-feminismo mais ou menos encapotado que perpassa a nossa sociedade se encarnice sobre estes dois aspectos. Por exemplo, a Igreja católica, com pezinhos de lã, a espaços, vem deplorar o empenhamento das mulheres em prosseguirem as suas carreiras profissionais, «abandonando» os filhos a estranhos; as campanhas nos media para promover o retorno das mulheres ao lar são um objectivo constante dos sectores mais conservadores da sociedade. Nunca se fala no papel dos pais masculinos na educação dos seus filhos, é mais uma vez à mulher que se pede o sacrifício da sua vida pessoal. Ora se nós soubermos, como sabemos, que a independência económica é condição imprescindível para qualquer outra independência, não podemos deixar de denunciar mais esta mistificação.
Quanto à reprodução, a sanha da igreja católica e do fundamentalismo evangélico não conhece limites. Os direitos reprodutivos, do seu ponto de vista, não são direitos das mulheres: hipocritamente pregam o valor da vida com o objectivo escondido e nunca declarado de controlar a vida das mulheres.
Podemos pois concluir reafirmando que o controlo da produção em termos equitativos com os homens e o controlo da reprodução enquanto direito das mulheres serão dois mecanismos com enorme capacidade emancipatória que permitirão pôr cobro à relação domínio/submissão que tem prevalecido.

7 comentários:

  1. Olá Adilia, obrigada pela visita lá no cafofo.
    Eu concordo com vc, a mulher sempre ficou relegada ao serviço doméstico e a educação dos filhos. Temos poucas mulheres que se destacaram nos séculos anteriores nas artes, política, ciências ou qualquer outra atividade de destaque.
    Mas estamos virando o jogo. Hoje, quando vou trabalhar, vejo que a maioria das pessoas que estão a caminho do trabalho, são mulheres, mas com isso a mulher acabou acumulando funções. O trabalho doméstico precisa ser redistribuído e o homem deve assumir a parte que lhe cabe.
    Um abraço,

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  2. Olá Ana, obrigada pelo seu comentário. Sobre vida familiar e carreira tenho um texto que talvez lhe interesse ler, aqui vai o endereço:http://sexismoemisoginia.blogspot.com/2009/04/vida-familiar-e-carreira-que-resposta.html
    abraço, adília

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  3. "O sistema de produção, que até há pouco estava concentrado praticamente em exclusividade nas mãos dos homens"

    Acho que neste ponto é preciso algum cuidado. As mulheres sempre participaram no processo de produção, como é evidente. Na agricultura, no serviço doméstico, como serventes, etc. O que se pode reparar é que o valor do trabalho foi hierarquizado para fazer sobressair o que é praticado pelos homens em relação ao das mulheres.

    Se é à posse dos meios de produção que este excerto se refere então também a generalidade dos homens estiveram arredados dela. E as mulheres das classes altas que possuem os meios de produção foram e são beneficiárias dessa posse e, em última análise, tão responsáveis como os seus maridos pela exploração de homens e mulheres.

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  4. Mescalero
    Pode realmente haver alguma imprecisão no meu texto, claro que as mulheres sempre trabalharam, mas de uma maneira geral o seu trabalho quer ao nível dos cuidados com as crianças e idosos quer ao nível de produzir condições para que o trabalho dos homens pudesse desenvolver-se não era considerado um trabalho socialmente produtivo e não dava origem a um salário, desenvolvia-se na esfera doméstica e não fornecia às mulheres recursos que permitissem a mínima autonomia. Portanto é disto que estou a falar.Aliás eu refiro o trabalho das mulheres com o qualificativo de trabalho reprodutivo: reprodução da espécie e reprodução da vida social isto é criação das condições necessárias à vida: limpeza, cozinha, etc, etc.
    Queria ainda voltar a focar que quando refiro a opressão das mulheres é à sua opressão enquanto mulheres e pelo facto de serem mulheres e não enquanto trabalhadoras, aí elas são duplamente oprimidas.

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  5. "não era considerado um trabalho socialmente produtivo e não dava origem a um salário"

    Sim, já tinha referido isso. Não era considerado (e continua a não ser, já agora) porque a mentalidade patriarcal obviamente se auto-valoriza e desconsidera o resto.

    Sobre a autonomia que um salário permite é de salientar a armadilha que o salariato acarreta. Quando se produzia para subsistência ou para pequenos mercados como era o caso de muitas mulheres na agricultura, realmente tinham essa autonomia e só a perderam com a mudança para as cidades. Nas últimas décadas passou-se isso no hemisfério sul com a repetição dos erros do passado sob o argumento do desenvolvimento, criando com isso focos de pobreza nunca vistos. Há sempre a necessidade de explorar alguém para aumentar os lucros. Vivemos realmente na época mais obscena por que já passamos e as mulheres são as principais vítimas.

    Eu concordo com essa ideia da dupla exploração embora ache que a génese é a mesma. Não o homem, o sexismo ou patriarcado. Isso são já manifestações de um mesmo impulso predador, dominador, explorador. A dupla exploração das mulheres é apenas o resultado da dupla condição de mulher e de trabalhadora, mas também pode ser tripla se for uma mulher negra, e por aí adiante.

    cumprimentos

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  6. Mescalero,
    Não comungo a ideia de que vivemos na época mais obscena ... , penso que essa ideia advém do nosso conhecimento e memória do passado ser escasso e por isso tendermos a idealizá-lo. Temos de nos ater a critérios mais definidos para comparar a nossa época com outras. Quando falo em salário para a mulher estou a pensar que mesmo nas classes mais desfavorecidas é ele que garante à mulher afirmar-se em relação ao companheiro que, como sabe, muitas vezes reluta, mesmo quando é pobre, em deixar a mulher trabalhar fora de casa, e não é preciso muita argúcia para imaginar as razões. A identidade masculina, tal como foi construída, é responsável ainda hoje pela angústia real que um marido e um pai sentem quando não trazem dinheiro para casa.
    Em relação à tripla opressão que refere, estou plenamente de acordo.
    E, bem, a luta das mulheres não é contra os homens, é contra um sistema iníquo que os favoreceu, mais nada.

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  7. Inicialmente parece-me que o salariato terá contribuído para a perca da autonomia com a mudança das aldeias para as cidades. Depois da entrada das mulheres no mercado de trabalho temos um longo período em que continuou a representar a submissão ao maior rendimento do homem. Ainda hoje isto acontece. Os homens recebem mais para trabalhos iguais, as mulheres são as primeiras a serem despedidas, são vítimas de represálias por engravidarem, etc. Ainda há bastante dependência do "chefe de família" embora tenha havido grandes mudanças, sem dúvida. E esta análise reporta-se apenas às sociedades ocidentais modernas. No hemisfério sul é muito pior.

    Sobre a comparação entre épocas acho que os factos são arrasadores. Estamos efectivamente no período mais negro que já conhecemos mas o que me parece neste assunto pelas conversas que tenho tido com pessoas que discordam disto é que há uma relutância em digerir os números da pobreza, da escravatura, da agressão ecológica, das vítimas das guerras e das pandemias. A vivência na sociedade da super-abundância, das tecnologias das informação, do espectáculo total, dos muitos progressos técnicos e científicos é incompatível com a compreensão da dimensão da catástrofe que a humanidade está a viver. Mas é também a rápida evolução tecnico-científica que torna o crescente fosso entre ricos e pobres mais obsceno.

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