A prática da ablação do clitoris, hoje entendida, por gente civilizada, como uma prática selvagem e uma torpeza inominável que se comete contra as mulheres, encontra justificação em teorias freudianas conhecidas que tiveram tremendo impacto nas mentalidades nos fins do século XIX e no decurso do século XX.
Este caso particular chama mais uma vez a nossa atenção para o perigo de se aceitar acriticamente os dados e as teses dos investigadores, cientistas ou para-cientistas, porque, abrigando preconceitos milenares, muitas vezes, limitam-se a fornecer o racional para esses preconceitos. Não quero com isto dizer que o trabalho científico não seja meritório, tenho-o mesmo em alta conta, mas é preciso estar com atenção porque os cientistas e as cientistas são homens e mulheres como toda a gente, que abrigam preconceitos comuns na sua época, que têm um pensamento voluntarista (wishfull thinking) e que, obviamente, se enganam e iludem com mais frequência do que seria desejável. Vejamos pois algumas das teses da psicanálise freudiana:
O masoquismo, enquanto característica inerentemente feminina; a inveja do pénis; a mulher como um ser sexualmente castrado; o conceito de ferida narcísica são algumas expressões dessas teses e também dos preconceitos que incorporam. Os danos que provocaram, e continuam a provocar, na vida das mulheres são incalculáveis.
Aceitar que as mulheres são por natureza masoquistas e que o masoquismo feminino é fundamental para a preservação da espécie humana; que as mulheres têm inveja do pénis e que se sentem sexualmente castradas, implica defender teses que estão por provar, cabendo o ónus da prova a quem as defende. Construir uma teoria da sexualidade feminina com base nestas premissas é tudo menos sério, por mais respeitáveis que sejam os seus proponentes. Investigadores mais atentos deveriam ter constatado que afinal estavam a dar expressão «pretensamente» científica à visão comum que a sociedade da época tinha das mulheres e da sua sexualidade; mas, provavelmente, estes não estavam tão atentos assim e, numa época conturbada pelas novas e «estranhas» reivindicações das mulheres, esqueceram-se de psicanalisar os seus próprios receios, sentindo-se mais confortáveis no aconchego dos mitos com os quais conviviam de longa data. Esqueceram-se ainda que é possível encontrar explicações mais consistentes para o «aparente» masoquismo feminino e que a famosa inveja do pénis - se é que corresponde a alguma realidade, também tem outro tipo de explicação.
O texto de Sandra Lee Bartky a seguir apresentado descreve bem a concepção de sexualidade feminina defendida por Freud e discipul@s; esta, se levada às suas últimas consequências, justificaria que se procedesse, como se faz em outras culturas, à ablação do clitoris nas mulheres, como meio de facilitar o investimento numa sexualidade vaginal passivo-masoquista. Mas nós sabemos bem como esta prática, nessas outras culturas, responde a motivações de domínio sobre as mulheres bem menos confessáveis e completamente injustificáveis. Vejamos pois o texto:
«Freud e os primeiros psicanalistas nunca puseram em dúvida que a natureza feminina é inerentemente masoquista. Acreditavam que nas mulheres o masoquismo era em larga medida instintivo na sua origem, isto é, era consequência de uma certa canalização da libido do seu primitivo «cathexis» sádico-activo clitoridiano para um investimento vaginal passivo-masoquista.
O que é que isto significa? A jovem sofre uma ferida narcísica ao descobrir a «inferioridade» do seu próprio órgão, isto leva-a a ficar desapontada com o seu investimento clitoridiano «imaturo» e com a auto-estimulação activa do seu próprio corpo; começa então a antecipar a sua realização, primeiro a partir do pai e depois, muito mais tarde, a partir de alguém que o representa. Dado que o potencial da vagina para o prazer sexual é apenas estimulado através da penetração, a mulher psico-sexualmente madura, apta para a relação heterossexual e assim para a reprodução da espécie, deve esperar até ser escolhida e «tomada» pelo macho.
A repressão da sexualidade clitoridiana é necessária para que tal aconteça. A eminente freudiana Helene Deutsch acreditava que, dado que a menstruação, a desfloração e o parto – os principais eventos na vida sexual das mulheres – são dolorosos, o masoquismo feminino é funcionalmente necessário para a preservação da espécie. Maria Bonaparte acreditava que a ideia de relação sexual causava à jovem medo de ser atacada no interior do seu corpo; apenas a transformação da libido sádico-activa na masoquista-passiva podia permitir que uma mulher aceitasse a «continua laceração da relação sexual». Sandor Rado, um outro freudiano, dizia que a extrema dor mental sofrida pela jovem quando descobre a sua «castração» a excitava sexualmente; daí decorreria que ela só conseguiria atingir satisfação sexual através do sofrimento.» *
Sobre a inveja do pénis, que considero ser mais uma mistificação da cultura falocêntrica, volto a citar o texto de Lois Tyson, em Critical Theory Today:
«Muitas mulheres, feministas ou não, têm dificuldade em acreditar que as meninas, depois de descobrirem que os rapazes têm pénis, sofrem de «inveja do pénis», ou do desejo de ter um pénis, ou que os rapazes, depois de descobrirem que as meninas não têm pénis, sofrem de ansiedade de castração, ou do medo de perder o seu pénis. Contudo, a explicação destes dois fenómenos é clara, quando nos apercebemos do contexto cultural em que Freud os observou: a rígida definição de papéis da sociedade Vitoriana, que era usada para oprimir as mulheres de todas as idades e para elevar os homens a posições de dominância em todas as esferas da actividade humana.
Será de estranhar que uma menina queira (pelo menos a nível inconsciente) ser um rapazinho, quando percebe que os rapazinhos têm direitos e privilégios a que se supõe que ela nem sequer deve aspirar? Por outras palavras, quando você vê «inveja do pénis» leia «inveja do poder». É o poder e tudo o que parece acompanhá-lo – auto-estima, divertimento, liberdade, segurança em relação à violação física pelo sexo oposto – que as rapariguinhas invejam.
E o que o rapazinho sente - depois de perceber a sua superioridade social e o poder que esta comporta em relação às meninas – não será ansiedade pela possibilidade de o perder? A frase “É uma menina ou um mariquinhas”, tem o condão de ferir os rapazinhos (e também os rapazes grandes) porque os ameaça com essa perda de poder. A ansiedade da castração é assim melhor compreendida como o receio de ser removido para a posição de ausência de poder ocupada pelas mulheres.»
Em breves e curtas palavras podemos dizer que Freud e correligionári@s contribuíram para a manutenção dos valores da sociedade patriarcal, reforçando a sua misoginia, fornecendo-lhe o racional e colocando ao seu serviço uma retórica forte que fixava a atenção das pessoas, tão forte que ainda hoje, tantos anos volvidos ainda nos são familiares os conceitos e preconceitos que através dela exprimiram.
*Sandra Lee Bartky: Femininty and Domination: Studies in the Phenomenology of Oppression», Routledge, 1992, ps. 52-53
Sandra Lee Bartky: Femininty and Domination: Studies in the Phenomenology of Oppression, Routledge, 1990, p.s 52/3