terça-feira, 30 de março de 2010

Feminismo e marxismo

Embora concorde com a teoria marxista segundo a qual na origem da opressão das mulheres se encontram factores económicos, penso que, mesmo que em tese fosse possível abolir o sistema capitalista, isso só por si não iria permitir pôr cobro a essa opressão. Em minha opinião nada garante que a supressão do capitalismo restaure a igualdade entre homens e mulheres porque a opressão das mulheres é uma questão das mulheres e não da classe trabalhadora. As mulheres não são oprimidas porque são trabalhadoras, mas porque são mulheres e, pelo menos em hipótese, é possível resolver-se esta questão - e de facto há indícios de que está a ser resolvida, dentro das estruturas capitalistas.

O capitalismo tem-se revelado um sistema camaleónico, com enorme capacidade de adaptação e, provavelmente, não irá soçobrar por causa da igualdade entre os sexos, se calhar até a exige. Se soçobrar, e obviamente essa hipótese está em aberto, é porque não consegue resolver as complexas questões que a globalização levanta e que exigem alguma planificação e controlo que as estruturas capitalistas se recusam a aceitar porque implicariam contradições internas, aparentemente insolúveis, e transformações que não seriam já mera cosmética.

Reconhece-se que Marx e Engels criticaram a família burguesa, locus da opressão feminina e condição da replicação dessa opressão, denunciando como a mulher aí funcionava como um objecto decorativo e instrumento reprodutivo. Mas também tem de se reconhecer que nas famílias proletárias as coisas não corriam de melhor feição, bem pelo contrário, porque no caso dos homens trabalhadores as mulheres funcionavam às mil maravilhas como bode expiatório das frustrações sofridas, para além de estarem extremamente sobrecarregadas com a criação da «prole» e cuidados domésticos.
Marx e Engels também disseram que a servidão doméstica seria abolida se se transferissem para a sociedade responsabilidades e tarefas que então constituíam um penoso fardo para as mulheres, e se estas passassem a participar no processo produtivo. Consideravam que só nesse contexto seria possível a emancipação feminina. No essencial tinham razão, no acessório, não. Passo a explicar, de facto foi a participação das mulheres em larga escala e em força no mercado de trabalho que criou condições para a sua libertação; mas, quanto à servidão doméstica, e de facto era mesmo servidão, as coisas modificaram-se de tal modo que o termo virou obsoleto: creches, jardins-de-infância, electrodomésticos, lavandarias, refeições pré-fabricadas, partilha de tarefas e muitas outras coisas, muito particularmente o controlo da natalidade que já na época era discutido, mas que eles negligenciaram, vieram simplificar de forma extraordinária os serviços domésticos. Resumindo criaram-se condições objectivas para a emancipação da mulher e criaram-se dentro do próprio sistema capitalista, não foi requerida a alteração das estruturas produtivas que Marx e Engels preconizavam para que tal se verificasse. De entre estas condições objectivas, precisamente uma das mais importantes, e que eles se esqueceram de referir, foi o controlo da capacidade reprodutiva pela própria mulher. Assim hoje as famílias e os lares já nada têm a ver com as famílias e os lares do século XIX e as alterações ocorreram sem o recuso à colectivização.

Inegavelmente Marx e Engels preocuparam-se com a emancipação da mulher e deram um contributo valioso; o marxismo teve o mérito indiscutível de explicar as raízes da opressão, apresentando-a como um fenómeno político e não natural: a mulher não nasceu oprimida, foi oprimida no decurso do processo histórico, e tal decorreu de factores económicos e de arranjos sociais, não da sua «natural» inferioridade, como muitos intelectuais da época pretendiam, mesmo homens de esquerda, e reverenciados pela esquerda, veja-se, por exemplo, o caso de Proudhon que reduzia o papel da mulher à procriação, entendia o lar como o seu lugar natural, repudiava o trabalho da mulher fora de casa, argumentando que roubava oportunidades ao homem, e, cúmulo dos cúmulos, chegava mesmo a propor que fosse reconhecido ao marido direito de vida e de morte sobre a esposa, no caso de grave falta de carácter.
Claro que Marx e Engels não partilhavam estas ideias de Proudhon, mas na Internacional Socialista que eles e os seus seguidores integraram, muitos e conceituados dirigentes adoptavam sem rebuço essas ideias e advogavam mesmo que as mulheres deviam ser proibidas de trabalhar.

Malgrado todas estas vicissitudes, a teorização marxista permitia esperança: afinal se tinham sido arranjos sociais os responsáveis pela opressão das mulheres, a transformação da sociedade podia também terminar com ela; e, assim, pode inspirar a Revolução Socialista de Outubro de 1917. Mas se é certo que nos primeiros anos da revolução, sob a orientação de Lenine, se deram avanços muito significativos quanto ao estatuto da mulher: Lenine declarou mesmo que a chave da opressão da mulher estava no papel que ela desempenhava na família e, na sequência de Marx e de Engels, preconizava transformações que a libertassem e permitissem a sua integração no tecido produtivo, já nos finais da década de 20 começou o que podemos designar de contra revolução estalinista e, paulatinamente, foram sendo postos de lado todos os progressos penosamente conquistados, com a restauração da família tradicional, e com a adopção de medidas legais que criminalizavam o aborto, dificultavam o divórcio, penalizavam a homossexualidade, etc. etc.

Claro que se pode sempre dizer que o marxismo foi confiscado pelo estalinismo e pelas políticas posteriores que levaram à implosão da União Soviética, mas, de qualquer modo, com todas as suas virtualidades e seus contributos positivos para análise dos problemas, enganou-se em muitas coisas e em minha opinião enganou-se especificamente ao querer subordinar a questão da mulher à luta pela libertação da classe trabalhadora e, por isso, tenho dificuldade em entender a atitude de marxistas de hoje que continuam a defender que o problema da mulher só pode ser resolvido pelo derrube do sistema capitalista e desse modo deitam areia na engrenagem de todas aquelas que não estão dispostas a esperar por tal evento até porque a vida humana é curta e é preciso aproveitar o dia.

*Este texto foi inspirado pela leitura de um post do blog Género con Classe que aconselho pela riqueza de informações e de perspectivas que contém. Claro que aqui manifesto a minha discordância em pontos significativos, o que de modo nenhum significa que o não tenha apreciado.

sábado, 27 de março de 2010

Na Islândia as mulheres não estão à venda

Na Islândia as mulheres não estão à venda e se calhar não é por acaso. Johanna Sigurdardottir[1], uma mulher, é primeira-ministra. Johanna conseguiu proibir no país os clubes de strip que, como facilmente se percebe, na maioria dos casos e das situações, são uma fachada para a prática da prostituição. Com esta medida, a indústria do sexo no país tem de fechar as portas e a Islândia passou a ocupar a posição 4 no ranking de 130 países quanto ao índice da diferença de género (os três primeiros também são países escandinavos).
A Islândia é um pequeno país (320.000 habitantes), mas deu um enorme passo ao aprovar uma lei que criminaliza a exploração sexual de mulheres, sem votos contra e com apenas duas abstenções. As razões invocadas foram feministas e não de natureza religiosa.
Kolbrún Halldórsdóttir, actual ministra do ambiente que tomou a iniciativa de propor a lei disse: «É inaceitável que mulheres ou pessoas em geral sejam um produto a ser vendido.», e asseverou que o sucesso obtido só foi possível com o empenhamento de muitas mulheres que trabalharam infatigavelmente na campanha para que a lei passasse. Na Islândia, as feministas não estão divididas em relação à prostituição, diferentemente do que acontece em outros países, por exemplo, no Reino Unido, embora este último, seguindo o modelo sueco, vá finalmente aprovar uma lei que penaliza quem prostitui a mulher.

A Islândia, além de um movimento feminista forte, tem muitas mulheres em cargos políticos, quase 50 por cento dos lugares no Parlamento são ocupados por mulheres. A este respeito, Halldórsdóttir disse: «Uma vez quebrado o tecto de vidro e havendo mais do que um terço de mulheres na política, alguma coisa vai mudar. A energia feminista parece perpassar todos os assuntos.»

[1] É a primeira mulher assumidamente lésbica assumir o cargo de primeira-ministra.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Discriminação social e injustiça epistémica

Estou a ler um livro que aborda um tema pouco comum, o tema da injustiça epistémica[1], que levanta problemas éticos relativos ao sujeito enquanto sujeito de conhecimento, aquilo que em jargão filosófico se designa por sujeito epistémico.

Neste livro defende-se a tese de que com frequência as pessoas são vítimas de tratamento injusto – opressão, ou porque o seu testemunho é sistematicamente descredibilizado pelo facto de pertencerem a um grupo que é alvo de preconceito, mesmo que seja um preconceito residual - e aí a autora fala em injustiça quanto ao testemunho[2], ou porque não possuem o vocabulário e os conceitos que permitem descrever, explicitar e denunciar as situações de opressão que experienciam, e aí a autora fala de injustiça hermenêutica. Num caso ou no outro, acontece marginalização epistémica que se revela na existência de sujeitos que são desfavorecidos pelo facto de não terem acesso justo ao conhecimento ou de o seu testemunho cognitivo não ser levado em consideração. A marginalização epistémica atinge os grupos sociais desprovidos de poder.

Alguns exemplos permitem compreender melhor estes conceitos. Assim, quando um juiz não dá credibilidade ao testemunho de uma mulher agredida ou roubada que fornece a identificação do agressor, com o argumento de que ela, sendo uma pessoa muito emotiva e psicologicamente instável, pode estar a fazer confusão; ou quando uma jovem branca acusa um homem negro de ter sido molestada sexualmente e o seu testemunho recebe maior credibilidade de um júri do que o do homem que está a ser acusado, estaremos, segundo Miranda Fricker, perante casos de injustiça relativa ao testemunho. Tanto num caso como no outro é de supor a existência de preconceitos residuais que atingem mulheres - enquanto pertencentes a um grupo considerado menos capaz de conhecimento objectivo, e homens – enquanto membros de um grupo racial, considerado à partida mais capaz de perpetrar o acto que está a julgado.

A injustiça hermenêutica ocorre quando as pessoas não possuem os conceitos necessários para objectivar a situação de opressão que estão a viver e, por tal motivo, não conseguem lidar de forma eficiente com ela; significa que as pessoas não têm disponíveis recursos conceptuais para descrever e identificar situações que as podem prejudicar e assim nem tomam consciência clara delas nem são capazes de contra elas lutar.
Lembremos alguns exemplos significativos:
O conceito de violação - definido e explicitado pelo movimento feminista na década de setenta do século passado, inicialmente era um conceito difuso e só se entendia a violação como violação, pelo menos nos Estados Unidos, quando uma mulher branca acusava um negro dessa prática; ainda hoje, a violação marital ou a violação que ocorre em situação em que homem e mulher se conhecem e mantém um relacionamento, mesmo que esporádico (date rape), constituem situações em que alguns discutem se se pode falar de violação nesses casos.
Um outro conceito, o de assédio sexual, que também foi explicitado pelas feministas da década de setenta, permitiu que muitas mulheres se dispusessem a expor e a denunciar práticas que anteriormente lhes provocavam desconforto e mesmo danos psicológicos, e que só as prejudicavam a elas que se viam muitas vezes obrigadas a mudar de emprego ou a tomar outras atitudes, economicamente prejudiciais, em vez de denunciarem que estavam a ser alvo de abuso.
Também o conceito de violência doméstica, até então conhecido pelo eufemismo de «disputa familiar» na qual a polícia não intervinha, veio abrir às mulheres novas oportunidades na luta contra a opressão.

Constata-se assim que mesmo em sociedades liberais onde não há a intenção explícita de prejudicar grupos sociais que têm sido marginalizados, sejam mulheres, negros, judeus ou homossexuais, as práticas do quotidiano e os preconceitos residuais de que não nos apercebemos contribuem para manter a situação de desfavorecimento desses grupos. O conceito de injustiça epistémica é assim um conceito profundamente inovador com uma nítida dimensão ética, que deveria começar a preocupar a comunidade filosófica.

[1] Miranda Fricker: «Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing», Oxford University Press, 2007.
[2] O termo em inglês é Injustice Testimonial

terça-feira, 23 de março de 2010

Fazer a diferença

Christine Lagarde (1956), ministra da Economia e Finanças de França desde Junho de 2007 e a primeira mulher a ocupar o cargo num país do G8, foi considerada pelo Financial Times a melhor ministra das Finanças da zona euro (em Novembro de 2009).
No programa Dayly Beast de «Women in the World Summit», em entrevista a Thomas L. Friedman do New York Times, avançou alguns conselhos relativamente ao modo como as mulheres se devem comportar num mundo dominado pelo poder masculino:

«Nunca imite os homens. Não assuma que vai ser ouvida porque grita mais alto, usa calão e se comporta como os homens que estão à volta da mesa. Seja você mesma, apenas. Nós temos energia bastante, confiança e capacidade técnica para desempenhar o lugar e sustentar as nossas posições sem ter necessidade de imitar um modelo que foi estabelecido por outras pessoas.»

segunda-feira, 22 de março de 2010

Investir na igualdade de género é uma aposta no desenvolvimento






«Somos prósperos porque investimos na igualdade de género e é importante que todas as nações percebam que a igualdade de género é um pré-requisito para o desenvolvimento, não o contrário.»

Estas palavras foram proferidas pelo actual ministro norueguês que desde Outubro passado tem a seu cargo a pasta da Igualdade de Género, tradicionalmente entregue a mulheres. Audun Lysbakken, trinta e dois, anterior deputado da esquerda socialista, defende que está na hora de mobilizar os homens pela igualdade de género, problema que afinal também lhes diz respeito.
Enquanto deputado advogou a causa das férias «obrigatórias» para os pais por motivo do nascimento de um/a filho/a, porque acredita que é importante que os homens fiquem em casa para ajudarem a cuidar das suas crianças.
Na Noruega, as férias por maternidade/paternidade são de 46 semana, dez das quais tem de ser obrigatoriamente gozadas pelo pai (um dos esquemas de férias mais extenso no mundo).

Segundo Lysbakken, o desenvolvimento e a recuperação económica dependem da igualdade entre os sexos e esse desenvolvimento não acontecerá se as mulheres, metade da população, continuarem a ser «desperdiçadas» nos seus talentos, esforços e criatividade. Um país que não invista nas mulheres e nas jovens está condenado a ficar para trás. As mulheres são um recurso humano que uma sociedade evoluída não se pode dar ao luxo de desperdiçar. Permitir que as mulheres mantenham carreiras profissionais e em simultâneo sejam mães é o objectivo e é um investimento importante para o país.

Por outro lado, segundo Lysbakken, dar ao pai oportunidade para estabelecer laços afectivos mais fortes com filhos/as pequenos é também uma coisa boa e gratificante: ser pai do mesmo modo que a mulher é mãe é uma experiência extremamente enriquecedora e os homens começam a perceber e a apreciar isso. Com coisas tão simples como esta é convicção do ministro que será possível contribuir para uma mudança consistente das atitudes em relação às mulheres, nomeadamente no domínio da violência, que é incompatível com uma sociedade igualitária.

domingo, 21 de março de 2010

«Sexo é Violação»?!

Na década de oitenta do século XX, nos Estados Unidos, os meios de comunicação social repetiram ate à saciedade que Andrea Dworkin (1946-2005), feminista radical norte-americana, teria afirmado: «Sexo é violação».

Dada a notoriedade de Dworkin e seu empenhamento no movimento feminista, facilmente se compreendem as consequências que tal pronunciamento revestiu. Esta frase bombástica, de tanto ser repetida e martelada, transformou-se numa espécie de logótipo do movimento feminista - as feministas odiariam os homens e detestariam o sexo, e foi grandemente responsável pela imagem negativa que o feminismo assumiu que, por sua vez, explica a dificuldade sentida por muitas mulheres de com ele se identificarem.

O irónico é que não é possível encontrar a fonte desta afirmação na obra de Dworkin e ela própria, em entrevista concedida em 1995 à New Statesman & Society, rejeitou tal formulação que teria sido fabricada a partir de afirmações desinseridas de contexto e deturpadas.
Nessa entrevista, Dworkins esclarece que no livro Right-Wing Women afirmou de facto que na medida em que a legislação não permite que o marido seja acusado de violação, nenhuma mulher casada está legalmente protegida; e afirmou ainda que, na medida em que «o casamento obriga às relações sexuais – compulsórias e parte do contrato de casamento, nessas circunstâncias, era impossível entender as relações sexuais no casamento como um acto livre de uma mulher livre.»

Ora, de facto, estas afirmações de Dworkin não permitem de modo algum concluir que para ela sexo entre um homem e uma mulher corresponde sempre a violação; o que ela diz - hoje aceite sem contestação, é que mesmo na relação conjugal pode haver violação e que tal devia estar previsto na lei para protecção da mulher. Dworkin diz ainda, e hoje também não contestamos, que, se no contrato de casamento houver uma cláusula que torne compulsivas e obrigatórias as relações sexuais entre os cônjuges, isto é, que obrigue a mulher a ceder à vontade do marido, a relação sexual não será livre.

Assim, por exemplo, quando hoje nos sentimos escandalizadas ao sabermos que o parlamento afegão aprovou recentemente legislação que obriga as esposas a estarem disponíveis para os seus maridos uns tantos dias por semana, não fazemos mais do que seguir o pensamento de Dworkins nesta matéria; pois não aceitamos que a mulher seja obrigada a ter relações sexuais, mesmo que o parceiro seja o seu marido, porque entendemos que a relação sexual deve ser livre e livremente querida pelos dois. E, no Ocidente, homens e mulheres rejeitaram frontalmente a situação vivida pelas mulheres afegãs que o poder taliban, escondido mas presente, pretende continuar a oprimir. Mas, em 2009, no Afeganistão, onde decorria a manifestação que a imagem documenta, estas corajosas mulheres que sairam à rua para se manifestaram foram apedrejadas pela população e tiveram de ser salvas pela polícia para evitar um desfecho mais dramático.

No passado não tão longínquo, também no país das liberdades, foi preciso «crucificar» Dworkin e com ela o feminismo; mas, graças à coragem desta e de outras feministas, encontramo-nos hoje num estádio em que reconhecemos os nossos próprios desejos e o direito de os outros os respeitarem. Sim significa sim, e não significa não, e são palavras que temos o direito de pronunciar e que os outros precisam de aprender a ouvir.
De resto, Dworkin, embora reconhecesse que o paradigma sexual na generalidade das situações era o paradigma domínio/submissão, manifestou apesar de tudo algum optimismo quando afirmou que «as relações sexuais e o prazer sexual podem e vão sobreviver à igualdade.»

quinta-feira, 18 de março de 2010

Moda e anti-feminismo

«Bloomers» é a designação dada a um traje que foi popularizado por Amélia Bloom na revista The Lily, por ela editada de 1849 a 1853. Supõe-se que este traje tinha sido desenhado por uma prima de Elizabeth C. Stanton, a famosa líder sufragista da época, e consistia basicamente de um vestido curto e calças até ao tornozelo. Com este tipo de vestuário, que visava substituir as incómodas e pesadas saias compridas bem como as rendas, complicados encaixes e folhos dos vestidos tradicionais, pretendia-se dar maior liberdade de movimentos às mulheres, nomeadamente para passearem de bicicleta, desporto que se tornou popular na época.

A nova moda constituiu um autêntico desafio à moda tradicional e às convenções ligadas ao vestuário feminino e foi precursora das calças e jeans actualmente usados pelas mulheres em praticamente todas as partes do mundo. Causou imenso escândalo na época, como as palavras do editor do Arthur’s Home Gazette, de 1851 - que a considerava apenas digna de mulheres de reputação duvidosa, ilustram:
«A despeito do alarido que tem sido feito à volta da nova moda, ela não parece ter atingido de modo significativo as mulheres respeitáveis» e acrescentava: «na maioria das nossas cidades, aquelas que a usam têm sido apenas mulheres de má reputação.»

Amelia Bloom, respondeu bem a quem criticava a nova moda e a acusava de excentricidade:
«Quem pensa que parecemos «estranhas» precisa de recuar alguns anos atrás para o tempo em que as mulheres usavam dez ou quinze libras de camisas e crinolinas (petticoat and bustle) à volta do corpo, e balões à volta dos braços e então imaginar quem é que apresenta uma figura mais estranha, elas ou nós. Não nos preocupa o franzir de sobrancelhas de cavalheiros enfastiados, contamos com aqueles de melhor gosto e de costumes morais menos questionáveis para nos darem suporte. Se os homens pensam que ficarão confortáveis com saias compridas e pesadas, que as usem, não temos nada a objectar. Nós sentimo-nos mais confortáveis sem elas. Não queremos com isto dizer que apenas usaremos este vestuário e não outro, mas usa-lo-emos como vestuário do quotidiano e esperamos que fique tão na moda que o possamos usar todo o tempo e em todos os lugares, sem sermos tomadas por excêntricas. Já nos apegamos tanto a ele que sentimos desgosto em trocá-lo por um vestido comprido.»

Como podemos constatar, até as convenções do vestir feminino visavam, e visam ainda, dificultar a vida activa das mulheres, impondo-lhes estilos que não a favorecem.
Hoje, o uso de saltos excessivamente altos permanece um remanescente dessa tradição; o retorno à moda dos cabelos compridos, a que poucas mulheres conseguem resistir, é outro indicativo dessa constante preocupação em separar aparências, na esperança de, com isso, separar também esferas de influência.

terça-feira, 16 de março de 2010

Revolução industrial, feminismo e anti-feminismo

O anti-feminismo, fenómeno que me tem vindo a preocupar e que procuro entender, surgiu em força no século XIX, paralelamente à emergência do movimento que vai lutar pela libertação da mulher. Para compreendermos este movimento e aquele contra-movimento, temos de conhecer algumas referências relativas às condições económicas, sociais e culturais dos países do Ocidente, onde eles ocorreram.

A partir dos inícios do século XIX, nos países do Ocidente, a revolução industrial em curso provocou profundas transformações económicas e sociais. Antes da revolução industrial, o modo de vida da generalidade dos homens e das mulheres implicava frequentemente trabalho conjunto na agricultura e alguma partilha de tarefas; nesta situação, as mulheres conseguiam conjugar com relativa facilidade o trabalho fora de casa com as actividades domésticas e com cuidados com as crianças. Para termos uma noção mais clara desta situação, basta lembrarmos que, por exemplo, num país como os Estados Unidos, no início do século, 90% da população vivia do trabalho agrícola em quintas privadas, e grande parte dos artigos necessários era produzido em casa pelas próprias mulheres; mas, a revolução industrial, não só veio mobilizar os homens nas manufacturas e nas fábricas, como permitiu produzir em larga escala muitos dos produtos que antes resultavam do trabalho das mulheres em casa.

A industrialização criou novas oportunidades de trabalho para os homens, que foram acompanhadas, embora em muito menor escala, de oportunidades para as mulheres, muitas das quais passaram a trabalhar em fábricas e em outros serviços de apoio às novas indústrias e às necessidades emergentes. Com o trabalho fora de casa, começou a surgir um clima mais favorável a um movimento de libertação das mulheres, o qual, alimentado pelo ambiente cultural criado do humanismo dos fins do século XVIII, ligado às revoluções francesa e norte-americana, as levava a colocar a inevitável pergunta: afinal porque é que não temos direitos iguais aos homens?
As mulheres começavam a antever novas perspectivas de autonomia e de afirmação individual que o salário auferido pelo trabalho fora de casa lhes podia propiciar; claro que tinham sempre baixos salários e normalmente os seus postos de trabalho eram conotados com a esfera feminina e por isso desvalorizados: secretárias, empregadas domésticas, professoras, enfermeiras, e obviamente operárias, etc.
Inicialmente foram as mulheres solteiras as primeiras candidatas ao trabalho fora de casa já que as casadas teriam de enfrentar a dupla jornada pois os maridos não se dignavam ajudar em casa, e ainda, cúmulo dos cúmulos, os seus salários seriam por eles controlados; de qualquer forma, mesmo com todas estas desvantagens, o número de mulheres que passaram a trabalhar fora de casa foi sempre aumentando e o número de mulheres casadas nessa situação também aumentou significativamente.

No mesmo século XIX, em flagrante contraste com a classe mais popular, começou a formar-se uma classe média e média/alta, relativamente abastada, na qual maridos provedores das necessidades da família e mulheres domésticas, atentas às mínimas necessidades de esposos e filhos, era sinal seguro de elevação no estatuto social. As mulheres desta classe social supostamente deviam continuar em casa, enquanto símbolos decorativos do sucesso económico dos seus maridos, mas o facto de muitas das tarefas, anteriormente assumidas pelas esposas, serem agora entregues a empregadas domésticas - que não escasseavam dado constituírem mão-de-obra barata, tinha de criar em pessoas, dotadas de energia, mas votadas à inactividade, uma sensação de vazio e de mal-estar difuso que ajudava a alimentar a expectativa por voos de outra natureza.

Todas estas transformações na vida económica e social foram favoráveis à emergência do movimento feminista que vai lutar perla libertação das mulheres exigindo que lhes sejam reconhecidos os direitos de que até aí apenas os homens gozavam, como será o caso do direito de voto.
Para quem está de fora, pareceria que essa libertação, aparentemente mais do que justa, e só pecando por tardia, apenas se poderia defrontar com obstáculos decorrentes da esfera masculina, pouco interessada em perder ancestrais privilégios. E, de facto, na retaguarda do contra-ataque estiveram homens cultos, poderosos e influentes, mas quem deu a cara foram mulheres profundamente convencidas de que estavam a empreender uma luta justa contra algumas outras, desprovidas de pudor ou vergonha, que queriam desvirtuar o seu próprio sexo.

A ideologia do contra-ataque anti-feminista incidiu na diferenciação das esferas feminina e masculina e insistiu na exaltação do papel da mulher como esposa e mãe, responsável pela saúde física e mental das futuras gerações, reserva do progresso das nações e do bem-estar das sociedades. Este contra-ataque, preocupado sobretudo com as mulheres da classe média e média alta, muitas das quais começavam a aspirar a uma educação académica que até então lhes fora recusada, revitalizava velhos chavões que inculcavam a ideia de que o trabalho fora de casa e o estudo tornavam as mulheres masculinizadas e egoístas, culpabilizava as mulheres pelo que se entendia serem os desmandos sociais, acusando-as de fugirem aos seus deveres familiares, esgrimia contra elas argumentos científicos e também argumentos bíblicos, incutindo-lhes os velhos temores pelas consequências da transgressão dos mandamentos divinos.

À «nova mulher» - que se começava a emancipar, moderna, letrada e consciente de si mesma, os e as anti-feministas opunham a «verdadeira mulher», tradicional, submissa, despreocupada com estudos e abnegada até à auto-imolação, esquecendo-se de si mesma para se preocupar sempre em primeiro e fundamental lugar com os outros: um anjo no lar, um anjo fora de casa e a salvadora do homem. «Clara e confidentemente as autoridades (Igreja e Sociedade) identificavam a verdadeira mulher do século XIX com a mulher valente da Bíblia no coração da qual o marido regozijava e cujo preço valia mais do que rubis»[1].

Três aspectos identificavam a «verdadeira mulher»:
A verdadeira mulher chegava pura ao casamento, a abstinência sexual antes do casamento era para ela um imperativo moral e social;
A verdadeira mulher era submissa e obediente ao seu marido, nunca se lembrando de desacatar nem o seu «destino biológico», nem o mandamento divino;
A verdadeira mulher era um poço de virtudes e devia sentir-se enobrecida pela função que lhe era conferida de salvar o homem, mais naturalmente inclinado ao pecado.

Claro que este mito da «verdadeira mulher» poderia e deveria levar a perguntar: se essas «verdadeiras mulheres» eram moralmente tão superiores aos homens: puras, virtuosas, altruístas, redentoras, porque é que então não tinham um papel mais activo no governo de um mundo que, tanto quanto se podia constatar, continuava a ser caótico, violento e desgovernado? Mas, realmente o que se pretendia com toda esta retórica era prender a mulher aos seus papéis tradicionais, colocando-a num altar, identificando-a com tudo o que era nobre e sagrado, fazendo-lhe supor que a ela cabia o melhor dos dois mundo, poder e virtude, quando de facto apenas a virtude lhe era exigida, porque do poder restava apenas o simulacro.

Não tenhamos, todavia, ilusões; a mudança assusta sempre as pessoas e, neste caso, muitas mulheres, sentindo-se confortáveis numa vida limitada, mas sem grandes percalços, preferiam dar a sua aquiescência silenciosa ou mesmo o seu apoio declarado ao anti-feminismo, a cometer a ousadia de desafiar Deus, pátria e família - essa velha e sedutora tríade que ainda hoje balança tantos corações. Assim, começa a perceber-se porque é que o feminismo, ontem como hoje, continua a fazer espécie a tanta gente, nomeadamente a tantas mulheres, as tais que costumam afirmar: «eu não sou feminista mas…» tornando-se implícito que não assumem o feminismo, mas não desdenham todas as vantagens - e foram muitas, que com ele as mulheres alcançaram.

[1] Bárbara Welter: Dimity Convictions The American Woman in the Nineteenth Century.

sábado, 13 de março de 2010

Os direitos das mulheres são uma questão de segurança

Hillary Clinton, Secretária de Estado norte-americana, proferiu na ONU em 12/3/10, um excelente discurso sobre o Estatuto da Mulher que pode ser ouvido e lido na integra no endereço acima referenciado.

A ideia chave deste brilhante discurso é a de que os direitos das mulheres são uma questão de segurança, segurança para as pessoas e segurança para os próprios países:

«O estatuto das mulheres não é apenas uma questão de moralidade e de justiça, é também um imperativo político, económico e social; dito de modo simples, o mundo não pode fazer progressos duradouros se às mulheres e às jovens forem negados os seus direitos e se forem abandonadas.
[…]
A evidência é irrefutável. Quando as mulheres são livres para desenvolver os seus talentos, todos beneficiam, mulheres e homens, rapazes e raparigas. Quando as mulheres são livres para votar e concorrer a cargos políticos, os governos são mais efectivos e respondem melhor às necessidades dos povos. Quando as mulheres são livres para ganhar a vida e iniciar pequenos negócios, os dados são claros, elas tornam-se factores nevrálgicos do crescimento económico nas diferentes regiões e sectores. Quando às mulheres são dadas oportunidades de educação e acesso aos cuidados de saúde, as suas famílias e comunidades prosperam. E quando as mulheres têm direitos iguais, as nações são mais estáveis, pacíficas e seguras.»
Citando o jornalista, Nicholas Kristof, Clinton lembrou que, se no século XIX, o grande imperativo moral foi o combate contra a escravatura; se no século XX, foi o combate contra os totalitarismos, no século XXI, o grande princípio norteador terá de ser o combate pela igualdade das mulheres.

sexta-feira, 12 de março de 2010

Sexologia e anti-feminismo

Nos fins do século XIX e nos princípios do século XX também a recém criada sexologia deu uma ajuda de peso ao movimento anti-feminista ao fornecer-lhe argumentos, ainda por cima pretensamente científicos, para preservar o status quo e manter as mulheres confinadas à esfera privada e aos papéis tradicionais.

Patrick Geddes e J. Thomson, biólogos escoceses, em «The Evolution of Sex» (1889), norteados pela teoria evolucionista, defendiam a tese de que a assertividade masculina e a passividade feminina tinham origem biológica, havendo células específicas de género por tal responsáveis, e utilizavam metáforas que enfatizavam a agilidade do esperma em contraste com a natureza expectante e passiva do ovo.

Também, por exemplo, Otto Weininger (1880-1903), filósofo e sexólogo austríaco, no livro «Sex and Character», publicado em 1903, escreveu estas pérolas de pura misoginia: «A mulher não deseja ser tratada como um agente activo, ela quer permanecer sempre e em toda a parte – e é nisso que precisamente consiste a feminilidade – puramente passiva, e sentir-se ela própria na dependência da vontade de outrem; ela apenas e tão-somente quer ser desejada fisicamente e ser possuída como uma nova propriedade.»
O mesmo Weininger considerava que as mulheres não raciocinavam porque a energia indispensável para tal era desviada para a tarefa da procriação.

Deste modo a sexualidade feminina continuava a ser entendida pelos sexólogos - que não brincavam em serviço, única e exclusivamente em termos da satisfação que poderia propiciar ao homem e em termos de procriação.
Este contributo da sexologia, disciplina moderna e aparentemente vanguardista porque abordava temas tabu, fornecia o racional para justificar a separação da esfera privada, domínio feminino, da esfera pública na qual imperava a autoridade indiscutível dos homens.

Como Carroll Smith Rosenberg escreveu nos «Discourses of Sexuality and Subjectivity: The new Woman»: «O objectivo do discurso sexológico era o poder, a regulação e o controlo da Nova Mulher, constituindo-a como objecto sexual e, tornando-a sujeito da regulação política do Estado.»
A conclusão a reter é que a sexologia, juntamente com a ciência e as mais caras crenças do senso comum, colaborava para mostrar que os papeis feminino e masculino não eram intermutáveis, e que tudo devia permanecer como a religião e os bons costumes prescreviam.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Anti-feminismo e argumentos contra a educação das mulheres

No século XIX, o contra-ataque anti-feminista manifestou-se em várias frentes e uma destas foi a da educação. Com base em alegadas diferenças biológicas profundas entre homens e mulheres começou por se defender a tese de que as mulheres não eram educáveis, no sentido de se lhes ministrar formação intelectual equivalente à dos homens, por que elas eram seres intelectualmente inferiores. Portanto a sua falta de capacidade aconselhava a que não perdessem tempo com tal tarefa.

Com o correr dos tempos, o argumento da suposta incapacidade intelectual das mulheres mostrou-se insustentável e então recorreu-se a outro tipo de abordagem. Já não se colocava em causa que as mulheres pudessem ser educadas, mas debatia-se se elas deveriam ser educadas e concluía-se pela negativa. Ao constatarem que as mulheres educadas tendiam a casar mais tarde e a ter um menor número de filhos, os médicos relacionavam a educação das mulheres com pretensos danos na sua capacidade reprodutiva e aduziam uma explicação «científica»: o estudo desviava energia dos ovários para o cérebro e em última instância acabaria por tornar as mulheres estéreis. O facto de os homens com formação académica também tenderem a casar mais tarde e a ter menor número de filhos não parecia perturbar o argumento; tão pouco os incomodava o facto de algumas pessoas, como por exemplo, Mary Robert Smith apresentarem uma explicação bem mais plausível: o que acontecia era que mulheres educadas decidiam ter menos filhos.

Quando os argumentos «científicos» se mostravam menos convincentes, havia sempre o argumento moral que os ministros das diversas denominações religiosas esgrimiam: o conhecimento, tal como o fruto proibido por Deus no paraíso, abria o mundo às mulheres mas fechava-lhes o céu; o conhecimento acarretava a degradação moral das mulheres; que o mesmo pudesse acontecer com os homens, era piedosamente ignorado.

De qualquer modo, o objectivo era sempre o de desencorajar as mulheres a cultivarem a sua mente, a adquirirem conhecimentos sobre o mundo e a vida e a procurarem a sua afirmação e realização pessoal, continuando a remetê-las para a esfera privada da família e para os papeis exclusivos de esposa e mãe.
Ainda hoje, apesar de todos os avanços, a velha nostalgia do regresso ao lar e a estratégia de tornar a mulher bode expiatório de todos os desajustamentos sociais continua a funcionar, muitas vezes com sucesso.

sábado, 6 de março de 2010

Mulheres maternais e homens inteligentes

Nos fins do século XIX, com o surgimento do movimento que visava a emancipação da mulher, começaram a ser construídas teorias sobre a identidade de género que apontavam no sentido de este ser socialmente construído, distinguindo-se esta categoria da de sexo, biologicamente dado. Mas, não por acidente, nesse mesmo período, vários intelectuais e cientistas dedicaram-se a enfatizar novamente as velhas teorias acerca da natureza – essencial e imutável - da mulher, acentuando as suas diferenças em relação ao homem. Ora numa época em que a ciência tinha adquirido enorme prestígio era difícil discutir princípios que gozavam de autoridade semelhante à que a Bíblia tinha desfrutado durante séculos. Curiosamente ou não, esses princípios não se afastavam muito das «verdades» bíblicas no que ao tema dizia respeito.

De qualquer modo, numa análise mais crítica da situação, constata-se que os cientistas de serviço se limitavam a interpretar os factos naturais e sociais à luz dos seus preconceitos e ideias feitas. Isso aconteceu, por exemplo, com um dos mais conceituados cientista da época, Herbert Spencer, autor de «Psychology of the Sexes» e de artigos publicados na Popular Science Monthly, uma revista de divulgação científica que atingia uma vasta e culta audiência muito influente na formação da opinião pública. Spencer aceitava que podia haver desvios entre os sexos, podendo indivíduos de ambos os sexos manifestar características pertencentes ao outro.
Assim, Spencer escreveu:
«Sob especial disciplina, o intelecto feminino poderá produzir resultados superiores aos intelectos da maior parte dos homens. Mas não vamos considerar isso como verdadeiramente feminino, se provocar uma diminuição na realização das funções maternais. Normalmente só é feminina a energia mental que pode coexistir com a produção e cuidado do devido número de crianças saudáveis.»
Esta teoria, na época, era considerada científica e tomava como respaldo a teoria evolucionista que sustentava afirmações de que a reprodução era aquilo para que a mulher estava pré-determinada; daí se deduzia que esse seria também o seu dever. Ainda segundo os partidários da teoria evolucionista, a mulher não desenvolvera capacidades intelectuais porque tal não fora preciso, dada a função que tinha de desempenhar ao serviço da espécie e, por isso, o seu cérebro também não se tinha desenvolvido; assim tornava-se inquestionável que o homem era pela sua natureza biológica intelectualmente superior à mulher.

Ainda segundo Spencer, « (já que) a evolução procede no sentido de uma crescente especialização … a mulher tornar-se-á, portanto, ainda mais maternal e o homem ainda mais inteligente.» Daqui ele conclui que a educação e a inteligência podem prejudicar a maternidade - a única função que é caracteristicamente feminina; para além disso, os traços de carácter que convirá desenvolver na mulher serão a obediência, o altruísmo e o sentido do dever moral, sendo a prática religiosa uma actividade muito indicada para a mulher.

Hoje estas opiniões, apresentadas como pretensas «teorias científicas», encontram-se nitidamente datadas, mas é melhor não estarmos muito distraídas porque elas costumam aparecer sob outras roupagens, como acontece com a exaltação constante da maternidade, nos mais variados meios de comunicação social, que tendem a convencer a mulher a desistir de outros empreendimentos pois a função que verdadeiramente a enobrece e sublima será aquela. As recentes campanhas sobre o aleitamento materno, em minha opinião, também trazem água escondida no bico; claro que qualquer mãe quer o melhor para as suas crianças, mas também deve querer o melhor para ela própria e, em caso de incompatibilidade, deve saber que há óptimos produtos lácteos no mercado que podem ajudar a aligeirar a sua carga, no caso de tal ser necessário; acontece até em muitas circunstâncias que o leite materno pode nem ser a melhor solução. De qualquer modo, parece-me, o que estas campanhas visam sempre é criar na mulher sentimentos de culpa no caso de não se mostrar tão altruísta e despojada de vontade própria como a cartilha tradicional prescreve.

Acontece ainda que com frequência assustadora, velhas teorias regressam à ribalta, como se pôde verificar em 1950 quando o reputado Newsweek declarou:

«For the American Girl, books and babies don´t mix»

O que não anda muito longe dos nossos dias, quando a líder anti-feminista Beveryl La Haye, ouvida por milhões de mulheres norte-americanas, aconselha as jovens a casarem cedo e a estabelecerem como prioridade tratar dos maridos e filhos!

segunda-feira, 1 de março de 2010

À atenção das feministas das mais diversas tendências

Para as feministas é muito desconfortável reconhecer a força e a importância dos movimentos anti-feministas porque de facto é difícil aceitar que mulheres possam estar contra os direitos das mulheres; por tal motivo, as feministas sempre tenderam a desvalorizar o anti-feminismo e a considerá-lo um fenómeno marginal, afirmando-se mais preocupadas com a indiferença de mulheres do que propriamente com a oposição. Mas esta atitude lembra aquilo que se designa de política da avestruz de esconder a cabeça na areia para não ver os problemas como se assim eles deixassem de existir.

Temos de reconhecer que um número muito significativo de mulheres não se têm revisto nos objectivos propostos pelo feminismo, ou porque o feminismo lhes é apresentado de forma extremamente antipática ou porque de facto a sua visão do mundo e os valores que perfilham podem ser postos em causa pelo feminismo. Precisamos também de abandonar a visão de que as anti-feministas são marionetas manipuladas pelos homens; umas serão, outras não, o que é um facto objectivo é que muitas mulheres estão empenhadas em manter um processo que as feministas denunciam como opressivo.

No século XX, em dois períodos diferentes, assistimos ao espectáculo deprimente de ver mulheres em luta contra os direitos das próprias mulheres e isso num dos países mais evoluídos do mundo ocidental, os Estados Unidos da América. O primeiro período decorreu entre as últimas décadas do século XIX e as duas primeiras do século XX a propósito do sufrágio feminino. O segundo, nas décadas de 60 e 70 do mesmo século, a propósito da aprovação de uma emenda constitucional, conhecida pela sigla ERA (Equal Rights Amendment), que visava erradicar da lei qualquer forma de discriminação com base no sexo.
O ERA tinha sido proposto logo em 1923, mas não passou, e ficou na gaveta até à década de 60 quando as feministas da segunda vaga o colocaram novamente na agenda política. Foi aprovado na Câmara e no Congresso, mas, em seguida, a ratificação pelos diferentes Estados tornou-se problemática e o prazo estabelecido para a sua aprovação expirou em 1982, o que representou um sucesso nítido do movimento anti-feminista e um desaire considerável para as feministas, proponentes do ERA.
A luta contra esta emenda constitucional foi liderada pela anti-feminista Phyllis Schlafler que criou uma organização, o STOP ERA, para a qual conseguiu atrair um número considerável de aderentes. Muitas mulheres que aderiram ao STOP ERA eram membros de igrejas evangélicas cristãs e fundamentalistas ou católicas conservadoras; as suas crenças religiosas levavam-nas a opor-se à igualdade para as mulheres: percebiam o ERA como um instrumento legal que iria permitir tomar medidas contrárias à vontade divina; nesse aspecto, Schlafler ensinava que a Bíblia queria as mulheres companheiras dos homens, não suas iguais, e os padres católicos bem como os pastores protestantes, do alto dos púlpitos, reforçavam esta mesma mensagem.
Por outro lado, usando uma estratégia retórica que alguém definiu como «princípio da perversidade», Schlafly insistia que o ERA iria retirar às mulheres privilégios adquiridos e iria sobrecarregá-las com obrigações novas, nomeadamente a possibilidade de virem a ser recrutadas para o serviço militar. Claro que estava apenas a dizer uma meia verdade, pois a medida poderia contemplar excepções, e, embora numa primeira fase pudesse ter alguns efeitos negativos nas condições de trabalho de algumas mulheres, no longo prazo iria estabelecer um patamar de direitos iguais entre homens e mulheres. Mas, tal como já acontecera com o voto, que tinha sido pintado pelas anti-sufragistas como mais um fardo que as mulheres teriam de carregar, também agora se apresentava como desvantajosa uma medida cujo objectivo era precisamente acabar com a desvantagem que as mulheres tinham de enfrentar, isto é, acabar com a discriminação legal contra as mulheres.
O ERA constituía uma bandeira para as feministas que lutavam pela igualdade das mulheres, mas as líderes anti-feministas, como Schafler, conseguiram convencer as suas apoiantes de que o Era só podia ser uma medida negativa que deviam rejeitar, já que era proposto pelas feministas e estas ameaçavam a família e a ordem social instituída, propondo leis facilitadoras do divórcio e do aborto e defendendo o que então se designava de «amor livre». Com esta hábil retórica, os valores tradicionais pareciam em perigo e assim já não é tão surpreendente que tantas mulheres se tenham mobilizado mais uma vez numa luta contra os direitos das mulheres.

Um pequeno aparte sobre o conceito de «amor livre» que as feministas defenderiam e que tanto assustava a sociedade tradicional e as mulheres que nela se integravam. O que as feministas defendiam, de uma maneira geral, é claro, podendo haver algumas excepções, era que as mulheres pudessem fazer, tal como os homens, as suas escolhas em termos de sexo, sem serem penalizadas socialmente por isso. Antes de se aventar esta hipótese, a única possibilidade de vida sexual para uma mulher, a única em que ela não era penalizada era no casamento; que uma mulher quisesse ter uma experiência sexual sem um comprometimento sério era visto como uma imoralidade; de resto, ainda hoje se considera que um homem promíscuo é um «garanhão», mas apelida-se de «vadia» uma mulher promíscua »; o conceito de promiscuidade sexual implica o de relação sexual sem comprometimento que não seja o do mútuo consentimento entre as partes e o da experiência pelo prazer que ela possa proporcionar, na aceitação de que pode haver sexo, e sexo gratificante, sem amor, embora obviamente seja de esperar muito mais do sexo com amor.
Ora, se ainda hoje este é um tema tabu para muitas mulheres - que foram socializadas para só aceitarem o sexo com amor e com casamento, podemos supor quanto este tema era fracturante nos anos 70 do século passado e como se podia diabolizar as feministas e alienar a simpatia de muitas mulheres, provavelmente da maioria, em relação ao feminismo.

Neste caldo cultural era previsível que as anti-feministas não perdessem a oportunidade de explorar os temores e os preconceitos das mulheres, levando-as a atacar quaisquer medidas propostas pelas feministas, neste caso o ERA. Além do mais, as líderes anti-feministas matavam dois coelhos de uma só cajadada: ao mesmo tempo que atacavam o feminismo também criticavam o liberalismo político que se mostrava inclinado a promover as reformas feministas, aprovando legislação sobre os direitos das mulheres, e também atraiam muitas pessoas com valores religiosos tradicionais para a direita política e até para a extrema-direita; nesse aspecto não é de negligenciar o contributo que o anti-feminismo deu à direita e as políticas de direita, o que não surpreende se percebermos que a lealdade da elite anti-feminista era uma lealdade de classe, isto é, para elas o importante era preservar os privilégios de que gozavam enquanto esposas, irmãs e filhas daqueles que detinham o poder.
Com boas razões, as anti-feministas, pelo menos as líderes do movimento, temiam as consequências que o feminismo teria no modo de vida e na política americana e por isso é que mesmo nos nossos dias, o movimento continua actuante, bem oleado (com fundos económicos consideráveis) e com enorme capacidade de mobilização e de intervenção. Enquanto isso as feministas continuam dispersas, divididas e o que é ainda mais grave, cultivando ódios de estimação entre elas próprias: ou porque o alinhamento político é diferente, ou porque os valores conflituam, ou porque discordam neste ou naquele aspecto, entrincheiram-se nas suas diferenças, enquanto o verdadeiro inimigo aproveita a oportunidade para reinar – enfim, uma história verdadeiramente lamentável! E não se pense que estou a falar apenas das feministas norte-americanas; será bom que cada uma de nós no seu país, no seu círculo de conhecimentos ou amizades comece a dar mais valor àquilo que nos une do que àquilo que nos separa.

É necessário que cada uma de nós se abra à crítica, seja receptiva à opinião de outr@s e, sobretudo, evite a intolerância e o fanatismo, tendo consciência de que a divisão entre as feministas só ajuda aquel@s que pretendem manter o «status quo».