Michel Onfray, 50, embora extremamente popular em França, definitivamente não é um filósofo alinhado; bastante crítico do sistema é o que hoje em dia chamamos de «politicamente incorrecto». A sua crítica abrange as três grandes religiões monoteístas que acusa de negarem a vida e denegrirem o prazer em nome de pretensas realidades eternas e transcendentes. Não poupa também os grandes mestres da filosofia e a sua bastante óbvia misoginia. Neste contexto, como não podia deixar de ser, Onfray é também um defensor do feminismo e da reposição da justiça em relação às mulheres.
Considera que o cristianismo e a filosofia institucional se constituíram em super estrutura ideológica de suporte da dominação masculina, ao construírem um ideal feminino de abnegação, sacrifício e desistência, ao serviço do homem e da sua progenitura.
Embora reconheça Simone de Beauvoir como um marco na história do feminismo, não comunga a ideia, que aliás o próprio processo histórico desmentiu, de que o socialismo, acabando com a opressão de classe, poria automaticamente termo ao domínio dos homens sobre as mulheres.
Contra os que pretendem radicar a submissão da mulher ao homem numa pretensa natureza feminina, essencial e imutável, Onfray sublinha que a ética tem de ser anti-natura, contra-natura, por isso é que ela existe, de outro modo bastaria seguirmos a natureza e ela seria desnecessária. Convida a filosofia a desistir do seu passado e a denunciar o preconceito de que o destino da mulher é ser esposa e mãe. Denuncia a tentativa de, através da educação, impregnar as jovens com os valores da classe dominante masculina para que estas se tornem cúmplices do sistema.
Por fim, insiste na necessidade de se estabelecer uma efectiva igualdade de ser – igualdade ontológica entre mulheres e homens, acabando-se com mais um dos dualismos em que o pensamento ocidental é fértil - o dualismo no próprio domínio do ser humano.
O artigo de Michel Onfray que traduzi, publicado no Nouvel Observateur em 2008, dá conta dos aspectos que acabei de referir:
«O peso do cristianismo abate-se forte sobre os ombros das mulheres. A filosofia emprestou uma mão pesada à sujeição desta metade sublime da humanidade convidando-a a renunciar à sua feminilidade para se consagrar em exclusivo ao casamento e à maternidade. Há mil anos celebra-se a Virgem ou, o que vai vagamente dar no mesmo, a Esposa e a Mãe.
Eu fui preciso: a filosofia oficial. Entendo por esta a que, depois da instauração do cristianismo, dispõe de plenos poderes nas instituições. É longa a lista de pensadores que têm a pretensão de dizer a verdade para a totalidade do planeta mas que se cobrem de ridículo debitando disparates quando consideram a metade dos seus ocupantes.
O feminismo de Simone de Beauvoir teve o seu tempo, certamente, foi grande e necessário, mas a releitura da conclusão do «Deuxième Sexe» convence sem dificuldade da necessidade de repensar esta questão.
A ideia de que a instauração do socialismo suprimiria a exploração das mulheres pelos homens, eis o que parecia bom nos anos cinquenta.
Mas a etologia passou por lá: mostra-nos que o macaco é o futuro do homem, logo da mulher. Pelo menos retiremos dos mamíferos lições para uma ética do futuro: de facto, a moral deve ser um assunto anti-natura, contra-natura. Nesta perspectiva, a questão das mulheres é antes de mais a das fêmeas num mundo de machos em que a maior parte aspira a tornar-se dominante. Na configuração etológica, uma mulher define-se antes de tudo pela sua capacidade para ser a fêmea de um macho ou a mãe da progenitura do dito macho dominante. Se a filosofia pode dizer alguma coisa sobre este assunto, deve convidar a uma ruptura com este modelo pré-histórico: apesar do que dizem os filósofos oficiais e dominantes dos dois últimos milénios, o destino de duma mulher não passa pelo casamento e pela maternidade.
Certamente os homens têm interesse em pensar e depois divulgar estes disparates, porque de tal depende a esconjuração da sua angústia de não saberem responder ao desejo das mulheres a não ser pela satisfação da esposa e da mãe. O pensamento dominante impregna-se na educação das jovens raparigas, que, a partir daí, se tornam numerosas no avalizar do esquema do dominador …
Para pôr um termo aos filósofos, companheiros de viagem da infame besta misógina, precisamos de romper com este esquema do tempo das cavernas. Se a célebre fórmula de Simone de Beauvoir, «não se nasce mulher, vêm-se a ser mulher», é correcta (o que creio), deixe-se de indexar o destino das mulheres sobre a natureza, a sua natureza e promova-se uma autêntica igualdade ontológica que permita às mulheres serem esposas e mães se o desejarem, decerto, mas outra coisa também. Mulheres, por exemplo…»
Cara Adília,
ResponderEliminarSó uma nota sobre o Michel Onfray para dizer que ele é um pensador libertário e como tal terá de ser forçosamente feminista. Na prática a coisa não é bem assim que se passa, com muitos libertários ainda muito agarrados aos estigmas passados pela sociedade e pelo passado político, mas de facto a crítica antiautoritária libertária tem de ser indissociável do feminismo.
Olá Mescalero. Obrigada pelo comentário. Um destes dias vou tentar fazer uma matéria sobre anarquismo e feminismo. Se quizer colaborar posso postar um artigo seu sobre o mesmo tema no meu blog. Ok?
ResponderEliminarsaudações, adília
Não sei se conseguiria construir um post que conjugasse todas as pontas da meada que fui descobrindo, principalmente enquanto não voltar a ter net em casa e andar com tão pouco tempo.
ResponderEliminarInteressa-me também o eco-feminismo e a associação que faz entre a dominação da mulher e a da natureza como parte de um mesmo programa que vem desde Bacon e Descartes. Não há é grande coisa acessível na internet, nem gente com quem se possa debater e aprender.
cumps