sábado, 13 de junho de 2009

Mulheres – cúmplices e vítimas

Tenho dificuldade em compreender as razões por que tantas mulheres apoiam e defendem sociedades e valores que são nitidamente sexistas e que mantém condições objectivas para que se perpetue o sistema de opressão do feminino e a minha reflexão de hoje segue neste sentido.

Podemos considerar que ao longo dos tempos, nas diferentes sociedades, para além de outros tipos de dominação que aqui não vou referir, o masculino, enquanto classe, correspondeu a uma espécie de aristocracia e foi sinónimo de privilégio. Nas nossas memórias mais antigas, mas não tão antigas assim, lembramos, ou sabemos, que no Ocidente, nas famílias, a atenção e os cuidados concedidos aos filhos eram muito superiores aos reservados para as filhas, tanto em termos de alimentação, como de escolaridade e de liberdade de movimentos e de experiências e presumimos, com boas razões, que esta é a situação que ainda hoje se verifica em outras civilizações e em outros espaços geográficos e que está no cerne daquilo que entendemos por regime patriarcal: um tratamento de favor e um estatuto de superioridade concedido aos homens.

Julgo pois que podemos assentir em que a dominação masculina é um facto e que se manteve e mantém porque as mulheres não se revoltam contra ela. Mas para que tal tivesse acontecido, e continue a acontecer, torna-se necessário contar com mecanismos sociais mais ou menos difusos, mais ou menos subtis, que permitam a perpetuação da dominação. O objectivo desses mecanismos será o de conseguir “naturalizar” a dominação masculina, mostrar que ela é natural e não socialmente construída e que portanto está justificada. Para evitar a revolta da classe dominada - neste caso das mulheres, era necessário que as ideias, os valores e as regras da classe dominante fossem por elas assimiladas e isso foi conseguido em boa parte graças à intervenção desses mecanismos. Uma vez assimilados esses valores por um processo amplamente inconsciente, as mulheres tornam-se cúmplices da própria ordem social de que são vítimas.

Um desses mecanismos, porventura o mais poderoso, foi e continua a ser a religião de tipo patriarcal de que o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo – as religiões do Livro, constituem o exemplo mais acabado. Afirmar, sem poder ser refutado, sob pena de excomunhão ou até de condenação à morte, que foi o próprio Deus que decretou a submissão das mulheres é uma arma tenebrosa que mantém em respeito qualquer veleidade de dissidência e que ainda hoje se encontra perfeitamente actuante, embora mais atenuada - mas apenas mais atenuada, no Judaísmo e Cristianismo. Ora, como muito bem sabemos, as religiões “fazem a cabeça das pessoas” e por seu intermédio, as ideias e os valores da classe dominante são interiorizadas pelas dominadas.

Um outro mecanismo, que durante séculos funcionou lindamente, foi vedar às mulheres o acesso à educação e sobretudo à instrução. Lembremos que, mesmo no Ocidente só com o século XIX já bem entrado, foram admitidas mulheres em algumas universidades, e que, ainda hoje, a mulher letrada ou a intelectual é vista com desconfiança, afirmando-se que terá menores hipótese do que as outras no mercado marital. Também sabemos como as sociedades islâmicas mais fundamentalistas procuram dificultar ou até impedir a escolarização das mulheres e como há ainda muitos obstáculos ao exercício de determinadas profissões por parte das mulheres.

Além destes, há outros mecanismos mais difusos, mas não menos poderosos, ligados à indústria de entretenimento e à publicidade, hoje muito activos, e que sub-reptícia e insidiosamente moldam as mentalidades tentando perpetuar modelos de comportamento que remetem a mulher para o papel e o lugar que seria o mais adequado na perspectiva da dominação masculina. Sabemos como até na linguagem está presente o sexismo e como são combatidas as tendências para a libertar da carga sexista. Sabemos que a divisão de papéis e a sobrecarga da mulher com os trabalhos domésticos e o cuidado dos filhos funciona como mecanismo que as isola e impede de participar na esfera pública onde poderiam ter uma intervenção mais activa no sentido de promoverem mudanças nas estruturas sociais de opressão.
Deste modo, uma vez percebido o processo de actuação da dominação masculina já podemos entender as razões por que tantas mulheres a aceitam e até defendem. Elas são vítimas daquilo que Pierre Bourdieu designa de violência simbólica que leva a que inconsciente e involuntariamente incorporem e partilhem a visão do mundo e os valores da classe que as oprime. Assim, ou se encontram “mentalmente colonizadas” e não têm consciência da situação, ou como se costuma dizer, em linguagem mais popular, fazem da necessidade virtude – não conseguindo eliminar a dominação defendem-na e julgam-na boa.

Conhecer os mecanismos sociais de dominação masculina é um passo importante mas não suficiente para a pôr em causa, pois como escreve Bourdieu: “ A ruptura não pode resultar de uma simples tomada de consciência; a transformação das disposições não pode avançar sem uma transformação prévia ou concomitante das estruturas objectivas de que elas são o resultado…”
As estruturas objectivas que podem ajudar à transformação das disposições e à anulação da dominação masculina são todas aquelas que contribuam para autonomizar e libertar a mulher e de que podemos enumerar algumas das mais importantes: acesso á instrução e ao mercado de trabalho em termos paritários com os homens; controlo da sua capacidade reprodutiva; divisão de tarefas domésticas em termos equitativos com o homem; acesso das mulheres a cargos políticos.

O combate das Igrejas organizadas a práticas abortivas e até, pasme-se, a práticas anti-concepcionais não acontece por acaso; a ladainha de que a mulher que trabalha põe em risco a formação das crianças e consequentemente a tranquilidade da sociedade (como se os homens não fossem tidos nem achados na matéria) também não acontece por acaso.

Nada acontece por acaso!

2 comentários:

  1. }:) grato pela visita. parabens por este texto, muito bem sustentado, eu me sinto de volta às aulas de Sociologia. felizmente, para a sorte da humanidade e do próprio homem (não o macho orgulhoso), a mulher tem reconstruido sua dignidade e conquistado seu devido lugar, na sociedade e no sagrado.

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  2. Grata pelo seu comentário.
    Sabe que tentei acessar o seu blog e não consegui, será que está a ser objecto de censura?
    Só quando cliquei no seu nome acima é que consegui entrar no blog.
    Estranho!

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