Ontem, ao tentar encontrar algum tipo possível de explicação para a sanha dos talibans contra as mulheres que, com a aprovação da sociedade envolvente, os leva a penalizá-las, mesmo quando são vítimas de violação, por uma curiosa associação de ideias lembrei o nosso imortal Kant que na obra «Leituras sobre Ética» escreveu sobre violação:
«Não importa que tipo de tormentos eu tenha de sofrer, ainda assim posso viver moralmente. Devo sofrê-los todos, incluindo o da própria morte, em vez de cometer uma acção desonrosa. A partir do momento em que eu não mais posso viver com honra, mas me torno indigno de viver por causa de uma tal acção, não posso mais viver de todo. Assim, é preferível morrer honrado e respeitado do que prolongar a vida por um acto desonroso. … Se, por exemplo, (a mulher) apenas pode preservar a vida rendendo a sua pessoa à vontade de um outro, ela está obrigada a desistir da sua própria vida, ao invés de desonrar a humanidade na sua própria pessoa que será o que estará a fazer ao transformar-se ela própria no objecto da vontade de um outro.»[1]
Resumindo, de acordo com as palavras de Kant, perante uma tentativa de violação, a mulher deve resistir matando-se ou permitindo que o potencial violador a mate, porque está a degradar-se e a degradar a humanidade através da sua própria pessoa.
Para além de as alternativas acima referidas puderem nem sequer estar à disposição da mulher, outras questões se levantam. Não se percebe como é que uma vítima de violação está a cometer uma acção, da qual resulta responsabilidade e culpa, percebe-se sim que ela está a ser vítima da acção de outrem e de uma acção que a reduz ao extremo da passividade, que tão apregoada tem sido nas descrições que se gosta de fazer das mulheres - porventura é essa passividade que o autor da violação procura na prática desse acto, mas esta é uma questão que merece outra abordagem. Kant, todavia, entende que de alguma maneira a mulher é culpada porque poderia e portanto deveria ter resistido e evitado a agressão nem que fosse à custa da própria vida.
Subjacente a toda esta questão, está o princípio, profundamente sexista, de que o valor, a dignidade e a honra de uma mulher apenas têm a ver com a sua vida e comportamento sexual , este princípio, por sua vez decorre, ele próprio, da redução da mulher à situação de objecto sexual que para ser valioso requer a manutenção de determinadas características definidas pelo outro sexo e aceites mais ou menos por todos através de processos de impregnação cultural. Mesmo nós, aqui, no Ocidente «civilizado» tínhamos (temos?) esta ideia da honra de uma mulher, e ainda há bem pouco tempo, considerava-se uma rapariga desonrada se tivesse mantido relações sexuais com o namorado, nesse caso, só o casamento poderia lavar a sua honra e transformá-la numa mulher honesta.
Será este o entendimento que os talibans e seus seguidores têm da situação? A vítima de violação é culpada porque deveria ter resistido, se não resistiu, não merece viver ou merece ser de algum modo punida? A mulher da imagem deveria ter acatado o costume e cometido suicídio?
Se esta não é a explicação, alguém me ajude e me diga o que é que vai na mente perversa desta gente.
[1] Citado por Alan Soble in “Kant and Sexual Perversion”
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