terça-feira, 14 de abril de 2009

Natureza e racionalidade

A filosofia ocidental identificou a esfera da racionalidade com o masculino e a esfera da natureza com o feminino e tal identificação foi o instrumento conceptual que serviu para justificar o domínio, submissão e estatuto social das mulheres.
Neste contexto, é compreensível que algumas feministas encarem com desconfiança todas as tendências que, mais ou menos abertamente, continuam a procurar relacionar a mulher com a natureza e que olhem com reticências o conceito de racionalidade.
O que se constata é que o conceito de racionalidade implica características do grupo que supostamente a possui e conduz à exclusão ou depreciação de outros grupos que ou não a possuem ou a detém num grau considerado inferior. A racionalidade é assim por inerência uma esfera masculina e nela estão contidos os atributos de objectividade, abstracção, universalidade e liberdade que a distanciam da subjectividade, das considerações concretas e particulares e da necessidade que impera na esfera da natureza.
Remeter a mulher para a esfera da natureza é afirmar, pelo menos de modo implícito, que o seu estatuto não depende de factores contingentes e de condicionalismos sociais, mas é antes necessário e inevitável; leva a enfatizar as diferenças entre os sexos, tende a inferiorizar a mulher e a conceder-lhe um tratamento desigual e injusto, numa palavra, a manter o status quo.
Por outro lado, como o conceito de racionalidade se constituiu como o critério que demarca o ser humano da restante animalidade, podemos dizer que o conceito de ser humano também não é neutro, como se pretende fazer supor, mas masculino ou pelo menos construído sobre o modelo masculino.
Às mulheres, aceitando-se esta camisa - de - forças, parecem restar apenas duas alternativas: ou se distanciam do (desse) ideal de ser humano e aceitam o modelo de feminino que as liga à natureza com todas as desvantagens conhecidas, ou procuram apropriar-se das características masculinas. Nestas circunstâncias talvez sejam compreensíveis os diferendos entre várias tendências feministas que nem sempre se entendem sobre o que realmente convém às mulheres. Mas nem tudo parece perdido, e pode vislumbrar-se um terceiro caminho, difícil de trilhar é certo e no momento mais teórico do que prático, que está a levar ao reexame de conceitos – chave da tradição filosófica ocidental numa tentativa de os reconceptualizar retirando-lhes a carga sexista que ainda incorporam.

2 comentários:

  1. E esse caminho que sugeres qual é ao certo? O de uma racionalidade 'temperada' pelas 'virtudes' femininas? Cá para mim desconfio por regra das análises dicotómicas marxistas que têm por seu turno como pedra angular a matemática simplista da dialéctica hegueliana: "tese, antítese - síntese".

    Não nego que o racional da mulher é diferente do do homem e não nego também que tem sido o homem a modelar o dito 'racional', como referes, contudo, para mim o racional feminino é, sempre foi, e sempre será pertença de outrém que não eu ou qualquer membro da classe da qual faço parte, a masculina, quanto mais não seja por ter sido a classe da qual faço parte a conceber o que é e o que não é racional ;)

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  2. Não se trata de uma racionalidade temperada pelas virtudes femininas; trata-se de um entendimento da razão que não a absolutize que não pretenda que ela nos dá regras universais e que é imparcial mas sim que veja que ela é sempre influenciada pelas motivações de natureza afectiva e que incorpore esse domínio na sua esfera, é exactamente o contrário da dicotomia de que suspeita. Hume começou a ver bem a questão quando referiu que a razão é escrava das paixões, Sarte também chamou a atenção para o facto aparentemente paradoxal de que nós deliberamos mas só quando já decidimos; mais recentemente Khun considerou que há factores subjectivos que interferem com a racionalidade dos cientistas pelo que esta nunca é pura e incontaminada. Estes são apenas alguns exemplos que no mínimo sugerem um caminho.

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