sábado, 20 de junho de 2009

Mulheres e poder

Com frequência criticam-se as mulheres por aspirarem a posições de poder, pretendendo-se com essa crítica insinuar que elas apenas querem equiparar-se aos homens para manter o mesmo tipo de sociedade e as estruturas de controlo existentes; ora como a sociedade e as estruturas existentes deixam muito a desejar em termos de perfectibilidade, a crítica parece ter alguma base de sustentação. Mas não tem!

As mulheres, algumas mulheres, não escondem a sua vontade de poder, querem ter poder, sim! Em primeiro lugar, porque toda a gente, e se calhar até mesmo os outros animais, quer ter poder; negá-lo é uma atitude hipócrita, decorrente de uma moral igualmente hipócrita que prega como valor máximo a obediência em cadeia: das mulheres aos homens e dos homens a Deus, escamoteando que nesta cadeia há uns mais obedientes do que outros, há senhores e há escravos/as. Em segundo lugar, porque algumas mulheres percebem que para mudar a sociedade e as suas estruturas opressoras é preciso poder, como se diz em linguagem mais popular, é preciso «meter as mãos na massa», não se pode ficar a contemplar umas mãos imaculadas e alvinitentes.

Quando falámos em poder várias questões se colocam: O que é o poder? É bom, mau ou neutro do ponto de vista axiológico? Que instrumentos utiliza? Como se exerce?

Poder significa capacidade para interferir no curso dos acontecimentos. Aspirar ao poder, em princípio, é uma coisa boa, é como querer ser livre – em certo sentido poder e liberdade identificam-se. Mas, assim como posso usar mal a minha liberdade também posso usar mal o meu poder; todavia, esta é uma outra questão que não tem a ver com o poder ou com a liberdade em si mesmas, mas com o valor instrumental de que eles se podem revestir.

Ao serviço do poder encontramos diversos instrumentos que vão desde a força física, passando pela beleza, a inteligência, o conhecimento e o dinheiro.

(1) Em relação à força física ela deve ter sido o instrumento inicialmente utilizado para determinar uma supremacia e nem há muito a dizer pois neste domínio é óbvia a situação de inferioridade das mulheres, apenas se pode salientar que as suas consequências foram calamitosas e ainda hoje se fazem sentir.

(2) A beleza e os atractivos sexuais conferiram às mulheres uma espécie de poder, que Rousseau designava de «império»; mas basta reflectirmos um pouco para constatarmos que se tratava de um império bem precário e incerto. Incerto porque, para principiar, nem todas as mulheres são belas e atraentes; precário porque, mesmo aquelas que possuem tais atributos, em breve, com a idade, sentirão que esse poder se desvanece; lembremos as balzaquianas, mulheres dos trinta, heroínas de Balzac que causaram estranheza porque se costumava considerar que, nessa fase, passada a juventude, a mulher entrava num declínio irreparável. Reparemos que, ainda nos nossos dias, um homem de idade, mas de determinado estatuto social é um senhor distinto, ao passo que uma mulher da mesma idade e estatuto é uma velha. Infelizmente, este tipo de poder, melhor dizendo, este simulacro de poder, muito incensado pelos homens, ainda hoje cega muitas mulheres, jovens e menos jovens, que não se apercebem da armadilha em que estão a entrar e que, em vez de investirem realmente em si mesmas enquanto pessoas, se deixam promover à situação de objectos, cobiçados é certo e valiosos também, mas, em qualquer dos casos, objectos.

(3) A inteligência é porventura o instrumento mais eficiente ao serviço do poder, mas tem de ser cultivada, desenvolvida, alimentada pelo conhecimento, o que implica trabalho, esforço, perseverança e prazer em aprender. Ora neste aspecto também sabemos como ao longo dos séculos, a sociedade, dominada pelos homens, sempre fez o que estava ao seu alcance para recusar às mulheres o acesso ao conhecimento que iria alimentar a sua inteligência; para tal foram usados mecanismos repressivos formais e informais, desde a proibição do acesso à instrução para as mulheres, até à zombaria a que eram sujeitas as poucas que tentavam cultivar-se em domínios considerados «fortalezas masculinas». Os homens perceberam que o segredo da submissão feminina, como aliás de qualquer tipo de submissão, reside na ignorância.

(4) Resta considerar o dinheiro e, neste campo, por exemplo, o sistema de heranças sempre penalizou as filhas, em benefícios dos irmãos e dos primogénitos masculinos; quanto a trabalho remunerado fora de casa sempre foi dificultado às mulheres; num caso ou no outro ficavam assim obrigatoriamente na dependência dos elementos masculinos da família e na prática nem eram precisos outros mecanismos para garantir a sua subserviência.

Resumindo, a supremacia masculina, inicialmente estabelecida pela força física, foi posteriormente reforçada, privando-se a mulher de instrumentos que lhe permitissem o acesso ao poder.

O poder masculino, dada a sua génese e estrutura, tem sido exercido de modo predominantemente autoritário, mesmo em sociedades que se pretendem democráticas, porque serviu para oprimir pelo menos metade da humanidade e ainda, até há pouco tempo, para oprimir povos de outras culturas e de outras raças. Mesmo nas cidades-estado da Grécia Clássica, sabemos que o poder tinha esta essência porque era apanágio de uma elite – a dos cidadãos, excluindo totalmente as mulheres, os escravos e os estrangeiros, que constituíam a grande maioria da população. Portanto, em termos de modus operandi temos ainda muito que aprender quanto ao uso democrático do poder que é aquele que interessa às mulheres.

Nos nossos dias, a presença das mulheres na economia, na política ou nas instituições que produzem conhecimento abre outras perspectivas ao exercício do poder, mas elas tem de evitar ficar reféns do modelo masculino de poder. Quando uma mulher é investida num cargo, seja como ministra, directora de um banco, reitora de uma universidade, passa a fazer parte de uma organização que foi «desenhada» por homens e para homens e, portanto, vai ter de se adaptar; mas neste contexto funcionam mecanismos que Jean Piaget descreveu para explicar o processo de aquisição de conhecimento, ele falou em «assimilação», «acomodação» e «equilíbrio»: uma mulher num determinado cargo tem tendência a desempenhá-lo de acordo com os esquemas de acção que já possui, por exemplo, pode procurar flexibilizar horários, ser dialogante e compreensiva, eventualmente improvisar uma creche para os filhos/as dos empregados/as - isto corresponde à fase de assimilação; mas para desempenhar bem o cargo tem de se adaptar à situação e suas exigências - isto é acomodação e leva-a a modificar os seus esquemas de acção iniciais; será bem sucedida se encontrar equilíbrio entre assimilação e acomodação, se uma não se sobrepuser à outra. Todavia, há que reconhecê-lo, por vezes a pressão masculina dentro das organizações é tão forte que a tendência das mulheres é acomodarem-se, nesse contexto surge o desequilíbrio e surgem as «damas de ferro» que nem sempre deixam grandes memórias. Mas, não há como fugir: renunciar ao exercício do poder significa desistir de qualquer mudança social efectiva, o único caminho é aceder ao poder e partilhá-lo e, uma vez dentro da cidadela, tentar modificar a estrutura e o modo de exercício do poder.

Não há volta a dar-lhe, como diz Amanda Marcote[1]: não se pode sair da selva, a única hipótese é sobreviver; eu acrescentaria: e ir abrindo algumas clareiras.

[1] It’s a Jungle out there

7 comentários:

  1. Adília como é que você compreende esse processo de equilíbrio das mulheres no poder hoje?
    Hoje é importante para os governos e empresas terem representatividade em todos as camadas ditas “excluídas da sociedade”, isso irá garantir êxito na sua popularidade e aceitação social... Existe aí a cooptação de mulheres, que se tivessem feito um caminho diferente, certamente, a história poderia ser outra... ou não? Esse desejo de poder, muitas vezes cega! Será que ele não compromete a assimilação e a acomodação do conhecimento?
    Esse processo de “socialização” ou “adaptação”, não transforma em nada o que está estabelecido. Isso foi exatamente o que ocorreu com praticamente todas as mulheres que chegaram ao poder. Se as mulheres ingressam num projeto de homens para homens e tem que se adaptar, temos que admitir que, embora, nem todas as mulheres têm o desejo de manter o mesmo tipo de sociedade e as estruturas de controle existentes, ao ter que se adaptarem é isso que acontece!! Aproveitar as brechas é importante, é necessário para “sobreviver na selva”, porém muitas vezes o que temos visto não são as mulheres chegando ao poder e agindo para uma transformação de seus papeis e sim para uma implementação maior de funções a esse papel. Negar isso é uma estupidez.
    Não serão essas funções em paridades com os homens que trará a liberdade a mulher!
    Quem disse que não podemos sair da selva? Se não houvesse chances de sairmos da selva, não teriam esses instrumentos contra nós, como a força física, a beleza, a inteligência, o dinheiro, manipulando até hoje!
    Só utilizar-se das brechas, acender ao poder,está mais que provado que não modifica os papéis. É necessária a insurreição feminina!!
    Isoladamente será mais difícil, mas se unidas...

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  2. Eu sou ainda utopiante nessa questão sendo q confesso em sussurro q fico excitada com a possibilidade da profecia maya se cumprir e adiantar a nossa tarefa... kkkkkkkkkkkkkkkkkk...
    vivemos uma fase de transição, após longos séculos de escravidão... vamos lá com calma, eu sei q todo mundo adora citar a Margareth Tatcher
    por exemplo como dama de ferro e dizer as mulheres no oder são iguais aos homens bla bla bla... mas, há aqui um mas... acho q esse período depois de um jejum tão longo de poder era mais do q óbvio q iriamos nos meter dentro de um mundo masculino demais e teriamos de ser tbm masculinas pra jogar aquele jogo... e há qto tempo a Maggie deixou o governo? prai uns 20 anos e ainda se fala dela? ótimo, publicidade gratuita... qto o poder mudou de lá pra ca? qto a gestão e a administração mudou de lá pra ca? diretamente por influencia das mulheres... não se pode negar...

    Sei q ainda ficamos indignadas por tantas coisas q queremos ver diferentes mas TEMOS TODAS DE FAZER UM EXERCICIO DE HUMILDADE E RECONHECIMENTO E OLHAR PRA TRÁS COM MUITO ORGULHO PQ O AVANÇO DAS NOSSAS GERAÇÕES FOI BRUTAL, MAGNÍFICO... E ISSO TEM DE SER LOUVADO E ACLAMADO POR NÓS...

    NEM Q SEJA PRA DAR FÕLEGO E CONTINUAR, PQ AINDA FALTA MUITO... BJINS...

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  3. Maçãs podres
    A sua análise desta questão parece-me pouco realista pois, se tivermos em conta o processo histórico, verificamos que, apesar de haver ainda imenso para fazer, ocorreu progresso efectivo na situação das mulheres, no Ocidente, de há dois séculos a esta parte, progresso esse que se acelerou nos últimos trinta anos.
    Quando comparo a situação das mulheres, nomeadamente a das classes cultas do século XVIII, por exemplo, com a nossa época sinto-me verdadeiramente privilegiada. Ora, quer queiramos quer não, tudo começou com o feminismo liberal, com o direito ao voto, o direito ao trabalho bem como o acesso à instrução que, numa linha de continuidade há-de implicar a paridade no desempenho de cargos de poder. Claro que ainda é tão diminuto o número de mulheres no desempenho de cargos de poder, que não me parece sério nem rigoroso tirar ilações sobre a forma como as mulheres exercem o poder, e tudo leva a crer que mais e mais mulheres no desempenho desses cargos irão condicionar o aparecimento de uma massa crítica que não vai limitar-se a acomodar-se, mas irá «impor» os seus esquemas de acção.
    A única alternativa a esta estratégia que V. propõe é a insurreição feminina, mas neste momento não estão criadas as condições mínimas para ela ocorrer; diferentemente de qualquer outra classe oprimida, as mulheres estão divididas e obrigadas a cumplicidades (maridos, filhos, família) que comprometem qualquer esforço de unidade e comprometem mesmo a criação da consciência de classe. Além de que a insurreição feminina iria alienar os homens, ora individualmente falando, penso que, de uma maneira geral, não temos nada contra os homens, temos contra o sistema patriarcal de que eles se aproveitaram, como nós o teríamos feito se as circunstâncias o propiciassem. Passa-se o mesmo que se passou com o colonialismo, o problema não eram os colonos, era o sistema.
    Estas são pois algumas razões da minha divergência em relação à V. posição, mas vou continuar a acompanhar o V. blog e a pronunciar-me sempre que se oferecer oportunidade. Penso que do debate de ideias só podem resultar efeitos positivos.
    Um abraço, adília

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  4. Nana
    Só li o seu comentário depois de ter elaborado a resposta a maçãs podres e parece-me que no geral há consonância entre a sua posição e as ideias que defendo neste texto; pelo menos sentimos que realmente se deu um salto significativo, embora ainda haja muito chão pela frente.
    um abraço, adília

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  5. Adília
    Gostariamos de saber onde você tirou essa visão de que tudo começou com o feminismo liberal?
    De fato as mulheres estão divididas, isso é realmente um problema. E o que de fato divide
    as mulheres, entre outras coisas, é essa estrutura familiar em que estamos presas, além de impedir a consciência de classe, cria em nós uma psicologia oprimida. Mas por medo do enfretamento, (por que as mulheres estão acostumadas com “facilidades cavalheirescas legais” conquistada por doação) culpa-se o sistema, ou seja, evita-se o enfrentamento com os homens e com o capitalismo. E de quebra, ainda se adapta a ele, ajudando-os em sua manutenção.
    Mulheres de direita não querem revolução. Elas são mães, esposas, devotadas aos seus homens. Ou, quando são agitadoras, o que elas querem é um pedaço maior do bolo. Elas querem salários melhores, eleger mulheres para os parlamentos, ver uma mulher se tornar presidente.
    Fundamentalmente, acreditam na desigualdade, só que elas querem estar no topo e não por baixo. Mas elas se acomodam bem ao sistema como ele é, ou com as pequenas mudanças para acomodar suas reivindicações. O capitalismo certamente pode dar-se ao luxo de permitir o poder a algumas mulheres,desde que a desigualdade continue todos podem entrar ao “Reino de Deus”.
    Entendemos que, o capitalismo é inteligente o suficiente para fazer com que as mulheres entrem em suas estruturas e se adaptem e fiquem se sentindo orgulhosas pelas "conquistas"! Isso não foi conquista, faz parte das estruturas do capitalismo.
    A acomodação capitalista chega a dispor que mulheres tenham 50 % ou 100% das propriedades desde que existam homens e mulheres proletários e oprimidos! Propomos a destruição da economia capitalista, das normatividades sexuais e do sistema familiar biológico e patriarcal. Devemos combater as estruturas e não se infiltrar nela e acomodar-se. Precisamos ter nossos próprios projetos para ter uma transformação radical, portanto, não negamos as adaptações/mudanças, mas não temos nada para nos vangloriar e nos sentirmos privilegiadas, porque não conquistamos...afinal, para evitar convulsão social, se afrouxa a corda do sistema para que nós mulheres não morressem enforcadas e não perceber que esta corda existe!
    Abraços podres.

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  6. Maçãs podres
    - Bem, a primeira vaga feminista centrou-se na reivindicação do direito de voto e ficou conhecida por feminismo liberal. Se não começou aqui, então como começou, você me diz.
    - Continuo a pretender que a culpa é do sistema: em circunstâncias paralelas, as mulheres, se beneficiadas, tentariam manter os privilégios, é uma questão de natureza humana, não de mulheres ou de homens.
    - Não vejo por que querer melhores salários ou representação política há-de ser uma coisa negativa. Há aqui da V.parte um processo de intenções pouco claro e não fundamentado.
    - Você já ouviu falar no Cavalo de Tróia?
    - Considero um erro essa de termos os nossos próprios projectos, os projectos que interessa defender são os dos homens e das mulheres que vivem neste planeta, para quê mais sectarismo,mesmo se fosse viável, que não é!
    - Mas a crítica de fundo que faço á V. posição é que não propõem nenhuma alternativa minimamente consistente e não basta voluntarismo para se operarem transformações radicias.
    saudações feministas, adília

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  7. Adília
    E vc conhece o poder do Multiprocessador? Já que vc gosta de filosofia, vamos a uma ilustração simples:
    1-Imagine uma mulher que cozinha para seu marido e esta cansada de esta cansada de espremer laranjas. Então ela reivindica mudanças e ele dá para ela um espremedor. A condição dela mudou, o esforço é menor. Mas a situação dela é ou não a mesma?
    2- Agora imagine que ela decide ir além e sair de casa. O marido então abre um restaurante para ela. Apesar de não estar mais num espaço privado, ela por acaso se emancipou? Sim ou não?
    3- cansada de cozinhar no restaurante do marido e com o lucro do restaurante, ela contrata cozinheiras negras pra sua cozinha. Ela por um acaso contribuiu para a emancipação definitiva de todas mulheres ou apenas manteve a condição de exploração de outras mulheres em seu beneficio próprio, mantendo assim seu marido no poder?


    Abraços do Núcleo de Estudos de Gênero Simone de Beauvoir

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