quinta-feira, 11 de junho de 2009

Uma moral de duas caras

A moral tradicional, de raiz judaico-cristã, tal como a conhecemos, exalta como valores a mansidão, a obediência, o espírito de sacrifício e de serviço, o altruísmo e a humildade e exala um odor indelével a santidade, muito do agrado das pessoas simples, pouco dadas à crítica e ao exercício da reflexão. Mas já Nietzsche (1844-1900), que de simples não tinha nada, a designou de moral de escravos, tanto no sentido em que teria resultado do triunfo dos escravos com o Cristianismo como porque defenderia um quadro de valores que implicariam submissão e obediência à autoridade, seja à autoridade divina, seja à autoridade temporal que se arvora em representante daquela.
Eu própria, bastante crítica em relação a Nietzsche, mas igualmente reticente em relação à moral tradicional, não posso deixar de tirar algumas conclusões que podem parecer cáusticas e ousadas e muito afastadas do politicamente correcto:

(1) Em primeiro lugar, a moral tradicional parece-me uma moral irrealista porque, como muito bem sabemos, ninguém gosta de obedecer, ninguém gosta de sacrificar a sua realização à realização do vizinho, ninguém gosta de ser escravo e todos preferem a liberdade; não toma pois em conta os seres humanos reais e pretende impor-lhes um dever ser que leva à negação do ser.

(2) Além disso, ou até por isso, revela-se uma moral hipócrita porque, embora idealize qualidades que procura impor aos oprimidos, na prática os opressores ignoram-nas completamente e só fica a retórica. Este aspecto é sublinhado por Mary Daly[1] que dá o exemplo de «Prelados ambiciosos (que) têm sido louvados não pela sua ambição, mas pela sua humildade» e «políticos rapaces e desapiedados (que) falam frequentemente em tom compungido de serviço, sacrifício e dedicação». Pode acontecer que estas pessoas se enganem a si mesmas - os mecanismos a que o ser humano recorre para se auto-ludibriar são inúmeros e poderosos, mas não é isso que estou a pôr em questão, o que defendo é que, na prática, as reais motivações e os valores que estão em campo são outros que não os apregoados pela moral tradicional, daí falar em hipocrisia: persiste apenas para consumo externo, proclamada e louvada nos discursos, mas não seguida nas práticas, serve uma agenda escondida cujo objectivo é manter as massas aquietadas.

(3) É a moral da sociedade patriarcal e, nesse aspecto, funciona muito bem porque ignora e nunca critica as estruturas opressoras e toda ela gravita à volta dos princípios da obediência e do respeito pela autoridade, transformando em pecado qualquer ofensa àqueles que detém o poder. É uma moral que não serve os seres humanos e, de entre estes, especificamente as mulheres, suas principais vítimas, porque estas, obrigadas a interiorizá-la por poderosos processos de aculturação, reforçam, por seu intermédio, o estatuto de seres dependentes e menores que a sociedade lhes atribui.

(4) É uma moral centrada no repúdio do corpo e do sexo, considerados obstáculo ao aperfeiçoamento do espírito, que tende a responsabilizar as mulheres pelas tentações dos homens, transformando-as em bodes expiatórios e repositório de todo o mal.

Denunciar os valores da moral judaico-cristã e transmutar esses valores era o projecto de Nietzsche, mas à moral dos escravos opunha a dos senhores e, atraiçoado pela sua profunda misoginia, não percebeu que os valores que criticava eram os da sociedade patriarcal e que só o sucesso do movimento feminista, que ele desprezava profundamente, poderia permitir que fossem postos em causa.

Esta moral, embora de raiz judaico-cristã, talvez porque é a que serve os interesses das sociedades patriarcais, não se limita geograficamente aos países do Ocidente, encontramo-la igualmente forte nos países muçulmanos e praticamente em todo o mundo onde as estruturas patriarcais subsistem.
Podemos dar um exemplo simples, que o comprova e que mostra como esta moral da submissão e da modéstia não serve a causa das mulheres. Recordemos o caso de Mukhtar Mai, jovem, vítima de violação de grupo, no Paquistão, violação que foi determinada por um conselho tribal para castigar o crime cometido pelo irmão que teria tido relações sexuais com uma rapariga de uma casta superior à sua. Mukhtar Mai sofreu o abuso, mas não ficou calada, não se envergonhou, não se suicidou: atreveu-se a desafiar o terrível estigma social que é a violação e apresentou queixa, sabendo que seria mal vista por muitos, a começar pelas autoridades, porque, em vez da coragem que revelou ao denunciar o crime - e que não seria própria do seu sexo, deveria ter tido vergonha e limitar-se a desaparecer de uma ou de outra maneira. Mas não, ela afirmou um novo estilo feminino de existência humana, não foi «mansa» nem «humilde», foi corajosa e enfrentou de cabeça erguida a situação; transgrediu a velha moralidade que lhe ordenava prudência e submissão por detrás da fachada da falsa modéstia, numa palavra, pôs em causa os valores da sociedade patriarcal e da moralidade na qual esta se respalda. Hoje Mukhtar Mai, que já viu a sua história publicada, dirige uma escola para jovens provenientes de meios desfavorecidos e uma casa abrigo para mulheres vítimas de abuso - transformou-se no símbolo de uma mulher que foi à luta e que venceu porque empreendeu uma luta justa e digna e não se deixou abater pela moral tradicional.

É curioso lembrar que também Kant, monstro sagrado da filosofia ocidental, teria reprovado o procedimento de Mukhtar Mai porque, para ele, a vergonha de ter sofrido uma violação e de não ter resistido, mesmo que fosse à custa da própria vida, deveria levá-la a esconder-se e a evitar toda e qualquer publicidade. Mas, se reflectirmos um pouco, percebemos que afinal a ética kantiana é apenas uma maneira mais sofisticada de reciclar e de tornar aceitável, em tempos mais críticos – período do Iluminismo, a tradicional moral judaico-cristã. Como sabemos, Kant sofreu forte influência da seita pietista em que foi educado e esta repercutiu-se na sua obra e particularmente na ética que nos legou.

Por todos estes motivos, não me canso de repetir que devíamos dar mais atenção às propostas éticas, simples e humanas, de David Hume, que aqui já tive oportunidade de apresentar, e devíamos começar a desconstruir éticas do tipo da kantiana e morais do tipo da judaico-cristã. Espero ter dado algum contributo nesse sentido.

[1] Beyond God the Father

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