Para responder à interrogação acima formulada vou procurar expor alguns aspectos do feminismo marxista e extrair as consequências que se me apresentam como dele decorrentes.
O feminismo marxista, como a expressão indica, é influenciado pelas teorias de Marx e de Engels e entende que a questão da mulher tem de ser enquadrada no contexto mais amplo da luta da classe trabalhadora – vulgo proletariado, contra as condições de opressão do trabalho pelo sistema capitalista de produção. Entende que do sucesso dessa luta e da abolição do sistema capitalista resultará a libertação do povo trabalhador e com esta a emancipação das próprias mulheres. Deste modo, o marxismo secundariza a questão da mulher e subordina-a à da luta de classes: serve-se a causa da mulher servindo-se a causa da classe trabalhadora.
O feminismo marxista critica o feminismo liberal reformista (século XIX, Mary Wollstoncraft e Stuart Mill, século XX, Betty Friedan), acusando-o de servir os interesses da agenda capitalista porque, por um lado, manteria intacta a estrutura da família burguesa (patriarcal) e, por outro, forneceria aos empregadores capitalistas um acréscimo de mão-de-obra barata que iria dividir a classe trabalhadora, fomentando a competição e não operando uma transformação profunda na sociedade, sem a qual não seria possível a autêntica libertação.
Simone de Beauvoir, escrevendo O Segundo Sexo na década de quarenta do século XX, ainda pôde manter a esperança nessas promessas libertadoras diferidas, mas o processo histórico que se seguiu e que culminou com o esfacelamento da União Soviética, num autêntico movimento de implosão, veio lançar sérias dúvidas sobre a análise marxista da situação feminina. Mas, apesar dessas esperanças, Simone de Beauvoir escreveu em Pour une Morale de l’Ambiguité: «Assim que uma libertação surge como possível, não explorar essa possibilidade é uma demissão da liberdade, demissão que implica má fé e que é uma falta positiva.» Ora estas palavras nem sempre são lembradas por alguns círculos feministas.
As dúvidas sobre a análise marxista da situação feminina adensam-se quando reflectimos, sem preconceito, sobre as alterações profundas que as reformas propostas pelo feminismo liberal provocaram na situação das mulheres nos países onde lenta mas progressivamente têm sido postas em curso. Mary Wollstonecraft, a precursora deste movimento, reivindicava o acesso à educação e à participação política, reivindicações sustentadas também por Stuart Mill, no plano teórico, e passadas à prática pelo movimento sufragista. A partir dos fins do século XIX, a entrada das mulheres no Ensino Superior e no decurso do século XX a obtenção do direito de voto, têm vindo a ser complementadas com exigências de justiça salarial, abertura das mais diversas profissões às mulheres e paridade na esfera política, exigências que o controlo da capacidade reprodutiva pelas próprias mulheres tornou realistas. Porque negar estas conquistas é negar a evidência, certos círculos feministas tentam desvalorizá-las, pretendendo que não se trata de verdadeiras conquistas, mas não é assim que as mulheres que as alcançaram o sentem.
O que resultou de todo este processo reformista foi uma alteração na estrutura da família que ainda não sabemos onde levará. Portanto, pretender, como pretende o feminismo marxista, que as reformas liberais não iriam alterar a estrutura familiar não se revelou correcto: as alterações são tão manifestas que todos os inimigos do feminismo contra elas se rebelam, assacando-lhe culpas imaginárias por todos os males que flagelam a vida social e pugnando pelo retorno ao velho quadro familiar.
Claro que no século XX mantiveram-se e até, porventura, agravaram-se diferenças entre ricos e pobres, sobretudo a nível dos países e continuam a existir situações graves de opressão e de exploração, mas o facto é que, no Ocidente democrático, as mulheres em geral viram a sua situação de opressão significativamente minorada, e isso não se deveu ao feminismo marxista, mas ao feminismo liberal.
Do que já sei acerca de partidos políticos constato que muitos homens, ditos, por exemplo, de esquerda, são tão ou mais retrógrados em relação às mulheres do que outros politicamente mais conservadores. Assim, por exemplo, no século XVIII não foram nem o democrata radical Rousseau nem o Kant do «sapere audi» («ousa saber») que lideraram a causa das mulheres, bem pelo contrário, mostraram-se profundamente reaccionários, cabendo os créditos mais positivos ao moderado David Hume ou a Condorcet, simpatizante da Gironda, um verdadeiro feminista avant la lettre. De resto, foi no período mais extremista da Revolução Francesa que, paradoxalmente, as mulheres, que nela se tinham empenhado esperançosas de uma mudança de estatuto, foram obrigadas, em nome do bem comum, a desmantelar os clubes que entretanto tinham formado e a retirar para o lar, sem terem conseguido quaisquer progressos significativos. Também não consta que na antiga União Soviética ou nos países da sua esfera de influência a situação das mulheres tenha conhecido avanços promissores.
Por tudo isto, é minha convicção que as mulheres devem empreender as suas próprias lutas sem se subordinarem a outras agendas políticas, por mais progressistas que estas possam parecer, isto sem prejuízo de nelas se engajarem, mas sem nunca esquecerem as suas prioridades.